Capítulo 10, parte 3

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Naquela tarde de domingo de tempo agradável, que logo se tornou noite e se encerrou, Liam começava a fazer um amigo sem perceber. A semana que se iniciara seria menos agitada que as semanas passadas; por esse motivo, ele conseguiu encontrar um tempo generoso em sua agenda para voltar ao Profoundelirium e finalizar o jogo com seu vizinho Artur. Como este estudava pela manhã e Liam estava sempre no London à noite, e lá ficava até a madrugada, o tempo que tinham para gastar juntos completando o game era a tarde.

Demorou alguns dias para atingirem o feito; mais de uma semana. Quando não estavam jogando juntos, estavam online falando sobre isso ou sobre outras coisas. Não que o jogo fosse o único elo entre os dois, mas era o que os unia num propósito maior, coletivo. Parecia tolo, mas era uma sensação boa essa de cumplicidade, a vontade de atingir um objetivo em parceria.

Depois do terceiro dia, já eram praticamente amigos de infância, tendo uma intimidade superficial quase imperceptível. Artur já não precisava mais pedir licença para ir ao banheiro ou para abrir a geladeira ou para trazer seu colchonete de casa e se deitar no chão da sala para jogar com mais conforto. Não precisava também de autorização para agredir amigavelmente o parceiro quando ele errava ou acertava, como fazem os bons camaradas. Liam, contudo, menos agressivo, contentava-se em bagunçar os cabelos naturalmente bagunçados de Artur, que os arrumava outra vez só por arrumar, pois seus fios seguiam a ordem do desgoverno.

No final das contas, a companhia do vizinho fazia Liam feliz. O jogo lhes proporcionava bons sustos, e, por esses, boas risadas. Desbocado, Artur xingava muito quando algo não saía como o esperado: se o personagem morresse, se o jogo travasse, se caíssem em uma armadilha, tudo era motivo para usar palavras do mais baixo calão. Tudo isso em tom muito grave, verdadeiramente irritado, o que fazia Liam rir mais, já que, com essas coisas, ele dificilmente perdia a paciência.

Tamanha era a assiduidade com que Artur frequentava o apartamento do vizinho que, um dia, sua mãe bateu na porta para chamá-lo para voltar para casa, que Liam tinha mais o que fazer. Foi então que eles foram apresentados. Márcia era uma mulher de estatura média, cabelos muito lisos e muito escuros, sempre amarrados em um rabo de cavalo; uma camisa, calça jeans e tênis, quase sempre em casa no horário do almoço. Devia ter seus quarenta e poucos anos e aparentava uma rigidez disciplinar que não combinava com seus traços extremamente maternais. Apesar de sempre se desfazer das convocações da mãe, Artur não a respondia com rudeza, só dizia "Já vou!", e nunca ia. Liam, é claro, fez questão de enfatizar que era ele quem convidava o rapaz para passar a tarde jogando, que ela não devia se preocupar, mas... Mãe é mãe.

— Vem aqui em casa qualquer dia, então — Márcia convidou, achando injusto que só o filho fosse ao vizinho e nunca o contrário.

Aconteceu em breve, no sábado da semana seguinte àquela em que iniciaram o jogo. Depois da uma da tarde, quando Márcia voltava do trabalho na clínica, Liam foi visitar o apartamento ao lado e conhecer a famosa lasanha de berinjela da matriarca, receita que Artur muito propagandeara. Ouvindo os dois jovens conversarem na sala, nem parecia que tinham a idade que tinham: só falavam de jogos, de tecnologia, de informática, como dois adolescentes sem maiores preocupações na vida.

A lasanha, de fato, era sensacional.

No mesmo dia, Liam conheceu também o mundo particular de Artur: seu quarto. Um espaço bastante... diferente, em certos aspectos, mas cheio de lugares comuns. Nas paredes, algumas imagens de bandas e mulheres seminuas, bem como um mural com um bocado de fotos dele acompanhado de amigos em vários lugares do mundo; Paris e Inglaterra eram os mais recorrentes.

— Eu já morei em Londres — Liam comentou, surpreso ao ver o vizinho em frente à Tower Bridge.

— Sério? A maioria dessas fotos é do mochilão que eu fiz pela Europa ano retrasado.

Se Eu Tivesse um Coração (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora