Noah precisava de um coração, precisava viver, e Liam tinha que resolver essa situação. Não importava se o outro fosse viver mais cinco ou cinquenta anos: ele só precisava viver. Ah, se o dinheiro comprasse todas as coisas! se comprasse um coração! se comprasse a cura! se subornasse a Morte!
Deitado no conforto do abraço morno de Noah, no silêncio citadino do lar sidéreo do parceiro, Liam digressionou pelas vielas estreitas do pensamento. Entre os becos sem saída, portas trancadas, buscando a solução do que parecia insolucionável, procurou Deus. Onde Ele estaria? Em alguma esquina? Em todos os lugares? Na imaginação dos mais ingênuos? Por que Ele permitiu que Noah, alguém que Nele acreditava tão piamente, fosse acometido, tão jovem, por uma doença tão cruel? Por que não o poupara? De todas as pessoas ruins que caminham ilesas sobre esta Terra maldita, por que Noah?
A resposta não veio e talvez nunca viesse, e disso Liam sabia; ainda assim, sem se dar conta disto, ele passou minutos e minutos conversando e fazendo perguntas a uma entidade extraterrena na qual ele nem sequer acreditava—ou pensava não acreditar. Já não dava mais para crer só no que se podia ver e tocar. Das coisas possíveis, o Homem dava conta; dos problemas da saúde de Noah, os médicos do Santa Maura cuidavam com o máximo de suas capacidades e competências, mas do impossível... Se a computação quântica um dia se tornasse real, quem sabe?; mas, enquanto isso, Deus passava a se tornar o único capaz de livrar Noah de um destino fatídico.
"Onde está seu Deus agora?", Liam poderia perguntar a Noah, já sabendo os possíveis termos de sua resposta: "Está nos médicos que cuidaram de mim, nas pessoas que ficaram comigo no hospital, neste quarto agora, a cada vez em que eu acordo para viver mais um dia". Liam às vezes falhava em entender que Deus era esse que acompanhava os passos de Noah de forma tão abstrata, tão diferente daquele que curava membros da plateia de qualquer culto religioso, na vida real ou na TV... Mas religião nunca fora o ponto alto das conversas entre os dois de todo modo.
***
A reaproximação foi um processo; não lento, mas trabalhoso. O Noah que Liam conhecera ainda era o mesmo—talvez um pouco mais pessimista ou desesperançoso em virtude do incidente recente e do marca-passo no ombro, mas, em temperamento, o mesmo: sereno, inimigo da ansiedade e da preocupação desmedidas, reticente. Seus mistérios, contudo, eram agora já desvendados; havia pouco ou nada que ele pudesse ter deixado escondido ou secreto. Liam, por outro lado, não era, nem de longe, a mesma pessoa que Noah conhecera. Não apenas isso, mas também Liam era agora livre, e essa liberdade era assustadora.
Primeiro havia Nicole. Sendo Noah, quer queira quer não, o amante, ambos os rapazes sabiam os limites a que podiam chegar. Depois, havia os pais. Mesmo sendo Liam o jovem-problema da família nuclear, existiam, também, limites: ele não poderia, sem mais nem menos, chegar em casa apresentando o bom amigo como namorado, por exemplo; seria um escândalo. A bolha que encapsulava o mundo particular dos dois sempre teve fronteiras muito bem delimitadas. Agora, porém, a bolha havia estourado e deixado aquele mundinho exposto a todo um universo de possibilidades, e esse estouro trouxe uma liberdade tão grande que, de tão grande, era paralisadora: como dois cães criados a vida toda presos a correntes, agora livres, Liam e Noah não sabiam para onde correr.
Por isso, não correram; não tinham pressa nem um objetivo. Aproveitaram o tempo de recomeço para aprender e apreender as coisas parados, para, depois, descobrir a que direção rumar. Tinham ainda muito que conversar, muito que entender, muito que colocar nos eixos antes de saírem do lugar.
Com o tempo, suas vidas voltaram a se entrecruzar. Duas semanas após a volta de Noah à rotina normal, ele conheceu o novo apartamento de Liam. Caminhou pelo espaço com os braços cruzados, observando os pequenos detalhes; a vista da janela, a bagunça no quarto, os controles de vídeo game no chão da sala, a louça na cozinha, o balde cheio de roupas para lavar, as panelas sobre o fogão, os eletrônicos sobre a cama, os sapatos sob, o varal-de-teto abarrotado, folhas de papel soltas por toda parte, o tapete do banheiro no chão, a tampa da privada levantada, as bitucas de cigarro na sacada.
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Se Eu Tivesse um Coração (romance gay)
Romance::: LIVRO COMPLETO! ::: Liam é um jovem bon vivant que caminha em uma realidade diferente da maioria das pessoas: herdeiro do quarto maior banco privado do país, sua vida é cercada de luxo, festas e extravagâncias. Acontece que, vez ou outra, o dest...