Capítulo 2, parte 3

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Passou-se aquele sábado tedioso. Depois veio o domingo, a segunda e a terça-feira. Durante esses dias, a estadia de Liam no hospital foi a mais enfadonha possível. Na verdade, não, não foi assim do começo ao fim: foi como um mingau de aveia com algumas gotas de mel: insípido, mas com seus momentos de doçura. As gotas de mel seriam as conversas estranhas com Noah, que, assim como nos tempos de colégio, vivia em uma realidade distante da de Liam. Seus assuntos eram amenos como seu olhar; seus gestos, suaves como os de uma criança que descobre o mundo; seu sorriso, sereno como o de quem recepciona os entes queridos na ceia de Natal. Um mistério, aquele rapaz; um mistério que Liam não faria muito esforço para entender, pois sabia que não conseguiria; sua visão de mundo estava limitada demais em torno de si mesmo para conseguir captar a Graça que Noah enxergava em sua vida comezinha.

Não falavam muito sobre ele, contudo. Mesmo nos diálogos curtos de pré-sono, sentados no mesmo banco da praça do hospital, sob a luz da mesma lua e das mesmas estrelas e do frescor da mesma brisa, vestindo os mesmos pijamas largos de tecido hospitalar azul-cor-de-céu, falavam muito mais sobre a vida agitada de Liam do que qualquer outra coisa. A Noah, ao contrário, era um tanto quanto fascinante conhecer alguém que tinha hábitos tão opostos aos seus; alguém que conhecia todos os cantos da cidade; que já conhecera a Europa; que tinha um convívio tão turbulento com os pais... Noah ouvia tudo com olhos e ouvidos extremamente atentos, e Liam sempre falava das coisas com tamanha exaltação! sempre revoltado, sempre achando que as coisas giravam em torno de si sem ter ele culpa; sempre inconformado por seus pais não terem se dado o trabalho de ir visitá-lo sequer uma vez; sempre cansado de ser julgado e condenado por ser como era, mas nunca disposto a operar qualquer mudança. E sempre fumando. Embora Noah o tivesse advertido de que, além de mau hábito, não era de bom tom fumar em ambiente hospitalar, Liam pouco se importava. E assim aconteceu a meia dúzia de conversas noturnas que tiveram dentro do hospital.

Téo e Nicole vieram nos dois dias que seguiram o ocorrido e Evelyn passou as terceira, quarta e quinta noites com o irmão quando terminava seu expediente no hospital. Dentro do apartamento, ela e Liam não conversavam muito. A vantagem era que Evelyn sabia como o hospital funcionava e isso garantia certas vantagens ao irmão, como saber o progresso de seu quadro sem que o médico precisasse ser consultado, ou conseguir um traje de dormir mais confortável, ou ainda fazer vista grossa para as guloseimas que Téo trazia clandestinamente para o amigo. Apesar de não serem próximos e de não terem qualquer coisa em comum, era inegável a admiração secreta que Liam sentia pela irmã, que nunca recebia qualquer mérito por ser o que era.

Na noite de terça-feira, deitado na cama do quarto, assistindo ao noticiário da noite, Liam já não via mais sentido em estar dentro daquele hospital. Os pontos em seu couro cabeludo, de acordo com o médico, seriam absorvidos pelo organismo, sem necessidade de retorno para retirá-los; os exames de sangue feitos dispensaram o uso do soro e permitiram alimentação livre; o corpo não doía, as escoriações leves em virtude da queda no momento da pancada já haviam cicatrizado... Liam sentia que permanecer no hospital era uma justificativa para a instituição fazer logo uma checagem completa e aumentar ainda mais a conta a pagar, que não sairia nada barato, embora seu plano de saúde cobrisse boa parte dos gastos.

Pensando nessas e em outras coisas, Liam se deu conta de que, naquela noite, não conversou com Noah. Quando saiu para seu passeio noturno e o procurou na praça para terem seu diálogo de cada dia, não o encontrou. Voltou ao quarto e, pouco depois, a irmã chegou. Agora ela estava sentada à poltrona, estudando. Evelyn se especializaria em Oftalmologia. O livro que lia era maior do que a soma de todos os livros que Liam lera ao longo da vida. Ao perceber isso, lembrou-se de outro flash de uma das conversas com Noah e chamou a irmã:

— Evelyn?

— Hum?

— Você tem vergonha de mim?

Se Eu Tivesse um Coração (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora