Capítulo 9, parte 3

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Ao menos até pegar no sono, Liam se desligou de tudo que se passava em sua cabeça por aquele dia. Conseguiu dormir em paz e repousar, relaxar os nervos. Teria ainda uma longa semana pela frente, uma cheia de afazeres e preocupações. Precisava voltar para o trabalho, continuar procurando um apartamento, dar notícias a Téo, talvez até ensaiar uma conversa com Nicole, mas, acima de tudo isso, o mais importante: precisava ligar o celular, que permanecia desligado desde a primeira noite na casa do amigo. Não que ligar o aparelho fosse algo sacrificante ou complexo demais, mas havia toda uma questão simbólica por trás do gesto. Aquele era o principal canal de comunicação entre Liam e Noah, e religá-lo seria como abrir as portas desse canal, tirar o esparadrapo de sobre uma ferida não cicatrizada, e isso arderia.

Iam-se já três dias desde o fim, e o efeito anestésico da ira acabava rapidamente. Quando acordou na terça, a memória se pôs a trabalhar contra Liam. Quantas vezes abrira os olhos e Noah fora sua primeira visão do dia? Quantas vezes fizeram amor no silêncio da manhã antes mesmo de saírem da cama? Quantas conversas murmuradas, absurdas, estapafúrdias, sobre Deus, as coisas, o universo, a fragilidade da vida? Quantos olhares calados e carinhos sutis ao som da natureza e da rua? E agora... nada. Tudo se perdeu; tudo era passado, lembrança dolorosa e irresgatável.

Liam ligou o celular. Era inútil fugir do inevitável. Quando a inicialização foi concluída, inúmeras notificações não lidas, mas nenhuma delas era de Noah. Entre outras, duas mensagens de Téo perguntando se estava tudo bem, algumas ligações perdidas—as de Alberto inclusas—, Facebook, e-mails, atualizações de aplicativos. Sentiu uma vontade quase incontrolável de mandar uma mensagem a ele, como sempre fazia todas as manhãs; mas o que diria? Bom dia? Que estava com saudades? "Volta pra mim"?... Liam queria tanto que as palavras que disse às margens do Erós fossem verdadeiras... Queria tanto conseguir assassinar Noah de dentro de si e não sentir nada daquilo... Mas não conseguia: ele estava mais vivo do que sempre.

Teriam que se falar, eventualmente. Havia coisas de Liam na casa do outro e outras questões em aberto, como o patrocínio do banco, que não seria suspenso apesar de tudo. Mas qual seria a melhor forma de contatá-lo? Uma mensagem? Um e-mail? Uma mensagem privada no Facebook? Ou um telefonema? Há quatro dias Liam não ouvia a voz de Noah, e não sabia qual seria sua reação ao escutá-la de novo. Sentir-se-ia feliz? ou sua dor só aumentaria? Mas já fazia quatro dias...

Decidiu arriscar. Àquela hora da manhã, ele já devia estar no Centro. Procurá-lo pessoalmente seria tortuoso demais, o melhor era ligar. O número, decorado, permanecia gravado na agenda. Um deslizar de dedo e alguns segundos de espera se puseram entre os dois rapazes.

— Oi.

A sensação de doçura e proteção que tomava conta quando um ouvia a voz do outro já não mais existia. Uma pontada aguda no peito era o que se sentia à lembrança de que tudo que aquele timbre macio representara já não representava nada mais.

— Oi...

Perguntar se estava tudo bem era desnecessário; a resposta era conhecida para ambos.

— Você pode falar agora?

— Posso.

— Eh... Tô te ligando pra... A gente... precisa combinar um dia pra eu pegar minhas coisas na sua casa.

— Ah, sim... Não precisa; eu já falei com a Evelyn, ela vai levar tudo pra você, não precisa se preocupar.

Um fio de desesperança se desnovelou.

— Ah...

Eles não se veriam, pois. A ingênua ilusão de que se encontrariam se desfez como espuma.

Se Eu Tivesse um Coração (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora