Capítulo 11, parte 3

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A manhã de domingo veio acompanhada de uma ressaca moral profunda. Ao abrir os olhos, ver-se no quarto sozinho e voltar os pensamentos à noite anterior, Liam se sentiu um completo idiota por ter feito tudo que fez. Mesmo não tendo, na prática, feito nada, a ideia de chamar Artur para fazer ciúmes no ex lhe pareceu tão ridícula que o fez sentir uma descarga elétrica de vergonha de si mesmo, de arrependimento. Como fora adolescente!... Fazer ciúmes! no ex-namorado! que agora está em outra! com outra! sua própria irmã! Cada faísca de autoconsciência tornava a vergonha ainda maior e a ressaca mais pesada.

Artur, por outro lado, se divertiu e achou o máximo se ver ao lado de Liam na seção Taigo Acontece da revista Mundo na segunda-feira: exatamente como previsto: "Liam Prado e Artur Amaral (músico)". Na mesma página, o primeiro aparecia também ao lado dos pais. Noah e Benjamin certamente conseguiram escapar dos flashes e não fazer uma aparição—não gostavam daquilo tanto quanto Liam. Por sorte, aquele tipo de evento não ganhava as grandes mídias, ficando ao alcance só da alta sociedade e dos que se interessavam por ela. Fruto da mesma sorte foi o fato de o beijo que Artur deu em Liam não ter sido capturado por nenhuma lente. Se um registro em imagem desse momento existisse, Lilian teria muito mais motivos para lhe embranquecer os cabelos.

O encontro com ela, aliás, aconteceu na quarta-feira, num almoço no Cuisine d'Or. O comunicado foi feito por Alberto, que agora funcionava como uma espécie de intermediário entre mãe e filho. Disposto a dar à mãe a chance que o pai pedira, Liam a encontrou de coração aberto, a fim de ouvir o que ela tinha a dizer. Não era muito: disse apenas que sentia muito pela reação exagerada quando soube de tudo e que queria reparar seus erros. Esses erros, porém, não eram de tão fácil reparo, e ela não parecia estar se esforçando para conseguir sua redenção. Os modos esnobes e a mania de perfeição estético-social ainda falavam mais alto que sua voz de mãe, o que comprometia deveras a vontade de dar a ela a trégua que Alberto, por outro lado, fizera por onde receber.

Houve, contudo, um cessar-fogo. Lilian "não entendia" algumas decisões do filho tampouco suas preferências sexuais, mas jurou aceitar e tentar não julgar, não se importar tanto com o que os outros poderiam pensar dela ou do rapaz ou da família. Disse que vinha conversando muito com Alberto e que este, ao contrário dela, se mostrava um homem que ela desconhecia, e que temia que esse novo homem talvez não a amasse tanto quanto o outro, o Alberto com quem ela se casara, há mais de vinte e cinco anos, quando engravidou de Evelyn. E quanto a isso Liam nada podia fazer: o pai avançara no tempo; a mãe... ficava, cada vez mais, para trás.

A felicidade de Alberto se tornou frustração num intervalo de dois segundos ao descobrir do filho que não existia a mais diáfana possibilidade de ele e o vizinho se tornarem mais do que bons amigos. O pai já cansara de dizer que era hora de Liam sair daquele poço sem fundo e tocar a vida para frente, esquecer-se, de uma vez por todas, de que Noah existia e aceitar que agora as coisas eram diferentes, que a vida é assim mesmo, que um dia se está com alguém, noutro, com outro alguém... Já era tempo de o filho aprender aquela lição, de fato, mas certas coisas são mais fáceis ditas do que feitas. Noah ainda era o pano de fundo da mente errante de Liam, pano que se tornara ainda mais lustroso agora que a imagem estava fresca na memória, que aqueles olhos ternos o penetraram outra vez naquele sábado amargo... Alberto já não tinha mais argumentos para desfiar, e seu ombro amigo Liam nunca utilizou, apesar de saber que ele estaria lá quando precisasse. Já havia aprendido a lidar com a dor e com a saudade, a transformá-las em monstros imaginários domáveis, que dormiam de quando em quando, embora jamais perecessem.

Naquela quinta-feira julhina de céu claro e nuvens fofas, Liam estava de volta às contas. Depois de, ao som de um longo bocejo, terminar de calcular as despesas do mês, que, graças à sua boa administração, se estabilizaram sem grandes transtornos, ele buscou papel e caneta para anotar tudo que precisaria comprar no supermercado daqui a pouco, quando saísse. O arroz estava acabando, o feijão também; carne para o final de semana e algumas latinhas de cerveja para renovar o estoque seriam boa pedida. Enquanto pensava mais um pouco, assoviando uma musiquinha chata que estava presa em sua cabeça, o interfone tocou.

Se Eu Tivesse um Coração (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora