O rio calado testemunhou todos os momentos de amor e desalento dos dois rapazes. As lágrimas secaram, as lamentações foram guardadas para depois; guardadas em uma gaveta trancada a duas chaves num armário que insistia em ser violado vez ou outra. Do Erós, retiraram quatro peixes, dois dos quais Noah devolveu ao rio por piedade das coisas vivas. Liam embalou os outros dois e colocou na caixa de isopor junto com suas duas latinhas vazias e a embalagem de Ruffles. Voltaram para casa com os espíritos em sintonia. Disseram o que queriam dizer, ouviram o que não queriam ouvir, perdoaram-se por suas faltas voluntárias e involuntárias, racionais e irracionais. Reinicializaram o sistema.
Chegaram com a mesma tranquilidade no olhar com que saíram. Inácio havia ido para a loja e Rita limpava a casa, que não precisava de limpeza alguma. Perguntou da pescaria e os peixes dentro da caixa foram a resposta. O clima desfavorável justificava o baixo número de animais capturados. Ninguém estava de fato muito preocupado com o bom sucesso da empreitada, diga-se. Deixaram as coisas em seus devidos lugares e foram para o quarto se deitar novamente.
Aquela foi uma das poucas e esdrúxulas manhãs de paradoxo que viveram. Estranhamente o bastante, manifestou-se um efeito um tanto peculiar do relacionamento: o pós-guerra—ou, para os menos poéticos, a calmaria depois da tempestade. O que o Erós ouviu se afogou em suas águas frias e se eternizou no oblívio. De volta ao lar e no mundo particular que se iniciava debaixo dos cobertores e acabava sobre eles, só houve a mais absoluta e recíproca ternura; e dessa bolha de sentimentos se extraía a Beleza mais seminal daquele amor: não havia hierarquia, relações de poder ou posições de comando entre os dois; não havia lado forte ou lado fraco, ou "o homem da relação", ou aquele que se doava mais: havia dois seres humanos vivendo um momento em toda sua plenitude sem se importar com nada além de seus próprios amores. Estavam nisso juntos, viviam e compartilhavam dores e delícias ímpares, díspares e análogas; eram duas partes de um todo divisível, mas inseparável; sabiam de suas particularidades e as respeitavam bem como a imperfeição humana permitia.
Na noite de ano novo, aconteceu tudo quase ao contrário do que acontecia na mansão. À noite, o lombo assado foi preparado, e tão poucas vezes na vida, apesar de tantos restaurantes visitados, Liam provou algo tão saboroso, e ele certamente se lembraria de pedir a Rita a receita, para que Leda a repetisse em casa depois. O jantar foi simples; não se vestiram todos de branco nem foram à praia pular sete ondas, tampouco comeram lentilhas ou fizeram rituais supersticiosos: apenas comeram juntos em boa paz. Depois, antes da meia-noite, foram a pé até uma das duas praças da cidade, e lá se concentrava a maior parte da população que não viajou. Dúzias de pessoas vinham cumprimentar Inácio e Rita, que andavam de mãos dadas o tempo todo. A praça, e também as pessoas, levavam a memória a tempos distantes, de local perdido na História. Casais adolescentes andavam lado a lado em passos apressados, bem como os trios ou quartetos de jovens moços e moças, que passavam uns ao lado dos outros, trocando olhares, sorrisinhos e assovios não tão ingênuos. Com as mãos nos bolsos, Liam acompanhava com o olhar aquela movimentação atípica e estranha para si. Ao seu lado, Noah, não menos distraído, tinha os olhos sobre a igreja, que não haviam visitado, decorada com pessoas sentadas em sua escadaria.
Liam sentiu vontade de segurar a mão do parceiro, mas sentiu que essa poderia não ser uma boa ideia. Numa cidade do tamanho de Magnólias, talvez o pensamento da pequena sociedade ainda estivesse arraigado em ideais já ultrapassados em centros urbanos maiores, como Taigo. Contendo o impulso romântico, contentou-se em passar o braço pelo pescoço de Noah, que não se espantou nem rejeitou o gesto, mas sim passou o braço pelo quadril do outro e prendeu o dedão numa alça para cinto do cós de sua calça. Aquilo era o bastante para os dois.
No momento da virada, uma carroça com alguns quilos de fogos de artifício foi posta no meio da praça e logo deu-se início a um espetáculo de proporções bem reduzidas, mas intenção honesta. Ao som forte dos estouros coloridos, todos trocaram abraços e desejos de boa sorte e felicidades no ano que se iniciava.
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Se Eu Tivesse um Coração (romance gay)
Roman d'amour::: LIVRO COMPLETO! ::: Liam é um jovem bon vivant que caminha em uma realidade diferente da maioria das pessoas: herdeiro do quarto maior banco privado do país, sua vida é cercada de luxo, festas e extravagâncias. Acontece que, vez ou outra, o dest...