Capítulo sem número

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Era uma manhã linda de primavera... Estávamos nós dois na campina próxima ao Rio Erós, onde íamos pescar de vez em quando com o pai dele. Ele vestia branco, estava lindo, lindo! Comemorávamos alguma coisa, mas já não me lembro o que. Ele me pegava pela mão e me guiava pelo campo como se estivéssemos indo a algum lugar, mas acabávamos chegando a lugar nenhum; e, no fim, estávamos no quarto de Magnólias, na cama dele, na nossa cama, naquele mundinho lindo e pequenininho que nós criamos para nós mesmos e frequentamos assiduamente durante o tempo todo. Estávamos naquela cama, naquele quarto, olhando-nos nos olhos, sorrindo, nos abraçando! E eu dizia o quanto eu sentira falta dele, e ele não me respondia: só continuava sorrindo e me abraçando e me acariciando... Depois ele se levantou e nós fomos para cozinha comer, mas os pais dele não estavam em casa; existíamos só nós dois... só nós dois.

Depois disso o sonho mudou de rumo e, no final das contas, eu acordei, sorrindo. Não é nenhuma surpresa, porém; eu estava certo de que sonharia com ele cedo ou tarde, hoje ou amanhã. Dito e feito; bastou um cochilo... Mas foi providencial isso ter acontecido.

Hoje é dia 3 de agosto de 2063, aniversário de morte dele. Todos os anos, nessa mesma data, dias antes ou depois, eu sonho com ele, e o sonho é praticamente o mesmo, todas as vezes: nós dois, jovens, lindos e apaixonados, em Magnólias, na casa dos pais dele, ou no meu antigo apartamento em Taigo, sendo o que sempre fôramos: lindos e apaixonados... É um sonho que não me faz bem nem mal; não me machuca, mas também não me alegra, só reforça a lembrança daquilo que eu já estou careca de saber: Noah nunca morreu dentro de mim.

Mas hoje é um dia diferente... Hoje, depois de muitos anos, depois desse sonho, desse bendito sonho que me persegue inverno após inverno, vim, pela milionésima vez, passar os olhos sobre tudo que escrevi e decidi que é hora de colocar um ponto final nesta história e talvez tentar superar, em definitivo, mesmo parecendo já ter superado, o fato de que Noah não é mais parte da minha realidade, e talvez o encerramento, o triste encerramento deste registro me sirva de ajuda para isso.

Explico. Noah esteve em coma por sete meses. Foram os sete meses mais longos da minha vida, acredite—você sabe. Nunca quis tanto algo na minha vida quanto quis que Noah acordasse e voltasse para mim. Nunca. E ele voltou. Sete meses depois, ele voltou. O que eu quero contar, no entanto, é o que se passou durante os últimos três ou quatro meses.

Enquanto ele esteve em coma, descobri na casa de Rita e Inácio um caderno em que Noah contava nossa história das mais diversas formas. Aquilo, para mim, foi um tapa, um soco, um golpe quase físico, mas, ao mesmo tempo, a prova mais cabal do amor que Noah sentia por mim, que era exatamente o mesmo amor que eu sentia por ele... Nas visitas ao hospital, quando chegava em casa, antes de dormir, sempre, a todo instante, eu lia uma parte ou outra do caderno enquanto ele dormia sem saber de nada que se passava ao redor.

Foi quando eu li a última entrada, uma carta que ele me escreveu e não enviou, que eu pensei: eu não quero me esquecer disso. Eu não quero me esquecer dele, não quero me esquecer da nossa história, não quero me esquecer de tudo que nós passamos para chegar até aqui, agora, neste momento, hoje... e foi quando eu decidi construir esta narrativa: contar a nossa história, da forma como minha memória melhor me permitisse fazer, desde o início mais basilar até o último instante, para que tudo ficasse registrado em papel e eu, depois, pudesse fazer exatamente o que faço todos os anos: ler, reler, reler e reler.

Então comecei. Enquanto olhava-o dormir, com papel e um caderno menos elegante que o dele em mãos, eu me dedicava a me lembrar de cada momento, cada segundo, cada etapa do caminho esburacado que constituiu nossa história. Não foi fácil, é claro que não, e, da mesma maneira, eu não me lembrei de cada linha, de cada diálogo, de cada frase que foi dita. Os relatos dele, também, é claro, me ajudaram muito; havia parágrafos tão bons que eu acabei anexando-os à minha história, porque se encaixavam tão bem!... Não aproveitei tudo, mas parafraseei muita coisa. Contei da nossa pré-história, dos tempos de escola, da minha relação com os meus pais, de como o reencontrei no hospital... Estava tudo relativamente fresco, claro: tínhamos dois anos de relacionamento e muitos episódios marcantes para contar. E eu tinha tempo.

Se Eu Tivesse um Coração (romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora