2015
Voltar ao bairro onde você passou toda sua infância e adolescência pode ser algo bem complicado. De repente, o tempo se torna uma unidade que mede a distância. Você vê as mesmas casas, as mesmas ruas e os mesmos postes, porém ainda parece um lugar totalmente distante na sua memória. Uma outra vida.
Tirei o capacete e pus sobre o guidão da moto. Deixei que sol iluminasse meu rosto e cheguei a fechar os olhos por um momento. Sentei no banco da Virago colocando meus dois pés nos descansos do lado esquerdo. Eu não sabia ao certo o que estava fazendo ali, talvez eu tentasse me conectar com uma parte de mim da qual havia me perdido fazia muito tempo.
Olhei para as minhas mãos e as luvas de couro que deixavam as pontas dos dedos nus aparecendo. Tirei-as. Puxei um cigarro do bolso e acendi na primeira tentativa. É engraçado como depois dos quarenta anos você sem querer se torna outra pessoa. Você não é mais jovem, mas também não é velho, sua identidade some. Acredito que a maioria das pessoas não gosta de fazer aniversário quando chega nessa idade, para falar a verdade eu não me importava mais com números. Nunca gostei deles.
Observei a rua Santa Cruz, quase na esquina com a Conde de Porto-Alegre. Não mudara muito, as pessoas sim. Uma mulher jovem e loira saia da casa onde morava seu Jorge, aquele que era o melhor amigo de meu pai – faleceu devido a uma doença do no rim. O bar da dona Neusa havia se transformado em uma casa comum – nunca soube o que acontecera com ela. Pensei em ir até o outro quarteirão ver a casa do Wallace, dois quarteirões abaixo na rua Felix da Cunha, porém sabia que eles tinham vendido a casa anos atrás e não teria ninguém conhecido. Somente mais memórias.
Dei dois passos para trás, estava na frente da casa em que morei por pouco mais de duas décadas. Estava diferente, enormes muros de concreto haviam substituído a simples cerca de madeira que meu pai havia feito a mão no verão de 1983. A casa ficava praticamente escondida, através da cerca elétrica no topo do muro pude ver a janela do meu antigo quarto no segundo andar. Ainda era a mesma janela branca de madeira que rangia sempre eu abria, reconhecia de longe. Traguei o cigarro.
Um homem apareceu na janela e me encarou por segundo, depois fez uma cara de nojo. Provavelmente estava pensando no que um velho de cabelos longos e jaqueta de couro fazia olhando sua casa, eu não me surpreenderia se ele tivesse chamado a polícia, mas não chamou. Continuei ali imóvel, praticamente no meio da rua, somente deixando a chuva de memórias me molhar.O portão de ferro se abriu e o homem que antes havia me encarado da janela havia saído para rua, era gordo e quase careca, tinha uma cara de quem não possuía muitos amigos. Carregava dois sacos de lixo que não estavam cheios, suspeitei que queria apenas ver o que eu estava fazendo.
— Bom dia – disse eu com um sorriso. A cordialidade é o ponto fraco de pessoas pequenas.
— Bom dia – ele havia tentado falar com uma mais grossa do provavelmente era sua voz normal, o que a deixou com um ar cômico.
Olheipelo portão entreaberto, do outro do muro a casa na qual um dia morei pareciaintocada pelo tempo, ainda tinha o mesmo tom de azul turquesa que minha mãeinsistiu durante meses para que meu pai pintasse. O caminho de pedra até aentrada ainda estava quebrado por causa do dia que bati com o martelo, nuncaapanhei tanto do meu pai quanto naquele dia. E eu vi, no fundo encostado nocanto a coisa que talvez mais mexeu comigo: o quadro de uma velha bicicletafeminina enferrujada. Aquilo mexeu comigo.
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88Hz
AdventureUma garota que foi embora, três amigos inseparáveis, uma promessa e um velho rádio. 88Hz conta a história de Eduardo Caravela, um jovem de dezessete anos que, depois que o amor de sua vida vai embora, conta com a ajuda de seus melhores amigos para...