Vinte e oito dias antes de ela ir embora.
Valentina andava se equilibrando na quina da calçada. O sol ia se pondo no horizonte e as estrelas começavam a brilhar. Eu segurava sua mão direita enquanto ela olhava diretamente pro chão. Notei no machucado dos seus lábios, fruto da sua mania de sempre morde-los quando estava nervosa. Finalmente o pai a convencera de que não havia problema em ficar sozinho em casa, mas é claro que ela não estava convencida disso.
— Tô entediada.
Faltava o brilho usual nos seus olhos enquanto seus cabelos dançavam ao vento. Eu tinha que alegra-la de alguma forma, odiava ter de vê-la daquela maneira. Seu maior medo era perder o pai. Me peguei pensando no que aconteceria se isso acontecesse, e eu sabia. Ela iria morar com a Vó. Eu não queria que ela fosse embora. Se era egoísmo eu pensar dessa forma? Era. Eu sei que era. Mas se o único medo de Valentina era perder o pai, o meu único medo era perder Valentina.
— Vamos fazer alguma coisa — sugeri.
— Eu tô sem ideias hoje.
— Me diz alguma coisa que você sempre teve vontade, mas nunca fez.
— Pular de para-quedas?
— Algo mais fácil.
— Matar alguém?
— Tentador, mas não. Outra coisa.
— Não sei. Não espero muito da vida. Desejo coisas simples e os realizo como posso. As vezes dá vontade de ter mais, de fazer mais, mas acho que no final nunca faz nenhuma diferença, sabe?
— Acho que a maioria das pessoas vive de aparência.
— Pois é. As pessoas namoram por aparência, compram as joias, os carros por aparência. Escolhem os amigos por como eles se parecem se afastam daqueles que não tem a aparência adequada pra eles. Mas e se essas pessoas ficarem cegas? Como elas vão escolher as coisas na sua vida?
— Boa pergunta.Ela parou de se equilibrar e sentou no meio-fio.
— Acho que ninguém para pra pensar porque simplesmente não se importam. Estão todos vivendo nos seus castelos de cartas imaginários. Basta um sopro pra que ele desmorone.
— O que você quer dizer?
— Nada. Vem.Ela se levantou e me puxou pelo braço.
— Onde vamos?
— Lugar algum. Vamos só andar. Eu amo o bairro do Porto. Amo os prédios abandonados, o cheiro, o chão coberto de cascas de arroz. Os caminhões que vem e vão.
— Você consegue ser feliz com coisas tão simples.
— A felicidade é simples, a gente que complica tudo.O sol da manhã batia nos grandes armazéns de mercadoria. Valentina andava sem rumo dando pequenos pulinhos. Sua blusa azul caia leve sobre seu corpo e todos os seus movimentos pareciam de certa forma passos de dança. Eu era desajeitado, ela conseguia ter um jeito especial até de ser desajeitada.
— A vida é tão curta, né?
— Acho que sim. Pra algumas pessoas.
— Geralmente as que não merecem — disse ela.
— A morte não escolhe ninguém por merecer morrer, ela escolhe no uni-duni-tê.
— Você acredita que existe um momento certo pra cada pessoa morrer?
— Não sei. Nunca pensei nisso, mas não. Acho que não.
— Curioso.Ela caminhava andando pra cima, observando com cuidado as estrelas.
— Acho que em algum lugar aí em cima existe algum outro mundo.
— Eu também, na maioria do tempo. Mas confesso que as vezes acabo acreditando que tudo isso são apenas pequenas luzes no céu.
— Talvez nós sejamos apenas um pontinho no céu de alguém também.Chegamos a uma esquina. Perto de nós estava a torre com quatro enormes cilindros que era cheia de arroz, depois enchiam os caminhões e de lá eles iam para todas as cidades vizinhas. Geralmente eram caminhões vermelhos antigos, mas não havia nenhum lá naquele dia. Valentina sentou-se no meio fio.
— Quer um? — Ela tirou um cigarro do bolso, neguei com a cabeça.
— Você não pode ficar fumando assim, Val. Faz mal.
— Acha que isso pode me matar?
— Claro que sim.
— É que a morte parece sempre tão distante. Mesmo que já tenha acontecido antes, parece que é algo que sempre está sempre muito no passado ou muito pro futuro. Mas a verdade mesmo é que não existe essa coisa de futuro e passado. Tudo que existe é o agora. E tudo sempre acontece agora. Mesmo que seja no futuro, vai ser agora quando estivermos lá.
— Val,..
— Ele vai morrer, né? Eu sei que vai.
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88Hz
AventuraUma garota que foi embora, três amigos inseparáveis, uma promessa e um velho rádio. 88Hz conta a história de Eduardo Caravela, um jovem de dezessete anos que, depois que o amor de sua vida vai embora, conta com a ajuda de seus melhores amigos para...