A Vida Segue

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  Dois meses depois de ela ir embora

Acho que o que realmente nos difere dos animais é a capacidade que temos de nos adaptar, não só a lugares, mas a situações e pessoas. Fazia cerca de vinte dias desde que ouvi minha voz no rádio dizendo que o Wallace iria morrer. Talvez eu estivesse fazendo uma brincadeira comigo mesmo afinal de contas, o fato é que aprendi a viver com isso, embora eu sempre ficasse antenado quando Wallace estava por perto. Eu queria dizer que estava tudo bem, que as coisas melhoraram para mim. Mas a verdade é que depois que ela se foi, a minha vida se tornou um rascunho do que costumava ser. Eu perdi a vontade de fazer coisas que antigamente eu adorava, perdi aquela felicidade espontânea que eu tinha. Eu não era mais o mesmo. Eu dormia e acordava sonhando com o dia que ela bateria em minha porta novamente. Sonhava.

A escola continuava um saco. Eu não sabia o que fazer da minha vida e não havia como decidir com aquele buraco no meu peito, com aquela sensação de que parte da minha vida estava faltando. Sempre que eu chegava em casa eu me exilava no conforto do meu quarto. Às vezes ficava observando aquele colar de pedra estrela, vendo os pontinhos dançando conforme a luz. Algumas vezes eu tentava pintar, mas não gostava de nada. O violão ficava encostado no canto do quarto, abandonado. Eu me sentia doente e vazio. Mas a pior sensação de todas sempre era quando parecia que eu não sentia nada. Passavam matérias nos jornais na televisão falando de crimes horríveis e assassinatos brutais e eu não sentia nada. Pessoas morriam e eu não conseguia me comover com aquilo. A gente nunca sente nada quando a facada não é perto do nosso próprio peito. Em uma noite chuvosa decidi começar a escrever sobre Valentina. Peguei papel e caneta e escrevi algo sobre nós dois, porém era algo que não havia acontecido. Era um momento que só existia na minha cabeça. Vez ou outra eu olhava para a janela, a agua escorria pelo vidro e sumia na escuridão.

Valentina era como a chuva. Aparecia sem avisar, te encantava, te molhava, deixava sua marca, seu cheiro, depois desaparecia. O que fica pra trás é a grama, terra molhada e a saudade.

— Cara, você tá péssimo — disse Wallace. Era três da tarde, mas o céu estava escuro e uma tempestade estava para cair. Ele foi me fazer uma visita.
— Pois é.
— Vamos jogar videogame?
— Não tô com vontade.
— Cala essa boca.

Acabamos por jogar meia hora de algum jogo qualquer, não que eu estivesse realmente interessado, mas não queria deixar Wallace sem fazer nada na minha casa. Ariane entra de repente pela porta e joga a sua mochila no chão. Ela não diz nada, nem nós. Ela coloca uma fita no rádio e logo Cazuza começa a cantar.

— Olha, ela chega e já pensa que tá em casa — brinca Wallace.
— Ela tem atitude.

Ariane começa a dançar no embalo da música, levanta as mãos ao alto a cada riff da introdução.

— Amor da minha vida, daqui até a eternidade — ela pega uma escova de cabelos. — Nossos destinos foram traçados na maternidade.

Ariane me puxa pelo braço e faz eu ficar de pé, o controle fica jogado no chão. Wallace aproveita o embalo e começa a dançar como um idiota, do jeitinho que ele ama.

— Canta, idiota! — ela fala antes de continuar cantando e dançando. — Exagerado! Jogado aos teus pés...! — ela coloca a escola perto da minha boca, fingindo ser um microfone e eu acabo cantando com ela.

— Eu sou mesmo exagerado.
— Adoro um amor inventado! — cantamos os três em coro.

Ouvimos (e cantamos) uma seleção de músicas escolhidas pela Ariane, partindo de Baby Come Back, passando por Take On Me e acabando em um disco inteiro do Led Zeppelin. Esqueci um pouco das coisas, das preocupações e das lacunas que ficavam na minha vida. A verdade é que por mais que eu afastasse meus amigos, sempre era bom estar com eles.

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