Seis meses antes de ela ir embora
7 de setembro de 1990
Eu andava com a minha bicicleta, que ainda era a mesma, porém meu pai fez questão que pintássemos de preto, só pra ficar um pouco mais bonita. O bagageiro também havia sido arrancado para que ficasse mais leve. As rodas haviam sido substituídas depois de eu conseguir furar as duas ao mesmo tempo – ainda não sei como consegui. Subimos a rua Dom Pedro II, que era grande e inclinada.
— Eu te desafio – disse Wallace.
— Eu te desafio em dobro – respondi.Encarei o declive com um aperto no peito, eu tinha certeza de que alguma coisa muito idiota iria acontecer. Mas adolescência é assim mesmo: você faz coisas idiotas e se sobreviver se torna um adulto sem graça. Olhei para o lado e Wallace observava o chão com uma expressão séria. Não sei se estava com medo ou só pensando no almoço que viria dali a pouco.
Dei o primeiro passo. Não pedalei, só empurrei a bicicleta e o peso do meu corpo fez o resto. Ouvi Wallace começar a andar atrás de mim também, porém não olhei. As rodas giravam cada vez mais rápido e eu alcançava cada vez mais velocidade. Não estava nem no meio da descida e já tive certeza de que se eu tentasse frear acabaria no chão. Segurei o guidão com toda a força que eu tinha para que a bicicleta não tombasse para nenhum dos lados na rua de pedras quadradas.
Olhei para trás o mais rápido que pude e lá estava Wallace, a expressão no seu rosto era indescritível. Lembrava o homem do quadro "O Grito", sua boca estava aberta e ele estava completamente apavorado. Voltei a olhar pra frente e constatei o motivo do apavoro: um caminhão de mudanças passava pelo cruzamento da rua das Dom Pedro II com a Gonçalves Chaves. Fiz os cálculos mentais em um segundo e constatei que a coisa ficaria feia.
Freei com toda força e joguei o corpo pro lado. Eu e a bicicleta deitamos, tudo virou um enorme borrão na minha visão. Meu corpo raspou no chão, era incrível como mesmo batendo com meu ombro e perna esquerda, a minha velocidade havia diminuído muito pouco. Wallace passou por mim voando feito um foguete enquanto minha velocidade diminuía. Vi ele passar bem em frente ao caminhão e escapar por milésimo de segundo de ser atropelado em cheio.
Finalmente parei. O caminhão buzinou duas vezes para Wallace e ainda ouvi um xingamento do motorista. Eu ainda estava deitado no chão de pedra com a minha bicicleta. Relaxei os músculos e fiquei deitado ali mesmo, no chão. Só naquele momento meu braço começou a doer. Fiquei com os olhos fechados pois o sol brilhava com toda força acima de mim, uma sombra tapou o sol.
— Wallace, eu pensei que ia morrer – disse eu.
— Por segundo também pensei – disse uma voz feminina.Abri os olhos e vi aquela figura me encarando, era linda. Tinha a pele pálida e usava um vestido florido, seus cabelos caiam sobre os ombros e a suavidade de sua voz era indescritível. Levei um susto por não saber de quem se tratava.
— Ei, essa bicicleta era minha – ela apontou. A bicicleta havia raspado no chão e parte da pintura preta havia saído, deixando à mostra o rosa original.
— Valentina? – Perguntei. Já havia ouvido falar de Valentina Macedo algumas vezes, principalmente de meu pai. "O Luiz Macedo tem uma filha da sua idade, foi dele que eu comprei aquela bicicleta, se lembra?". Eu já havia visto algumas vezes pela rua, mas só de longe. Nunca fui do tipo de prestar atenção nas coisas ou nas pessoas.
— Sim. Tu deves ser Eduardo, né? – Ela disse com um sorriso.
— É. – Eu não sabia bem o que falar, aquela figura me encarava. Estava pé logo a minha frente, o vento batia em seus cabelos cor-de-mel quase loiros e os faziam balançar em frente a seu rosto. Ela tinha um sorriso leve nos pequenos lábios rosados, então ele se desfez em uma expressão de medo.— Seu braço – ela disse.
Olhei meu braço direito que havia se transformado em uma cascata de sangue. A primeira coisa que fiz foi tentar não surtar e nem mesmo gritar, pois estava em frente a uma linda garota e não queria parecer fraco. Segurei a respiração e comecei uma contagem regressiva mental de dez até zero, se a dor não tivesse passado quando a contagem houvesse terminado, eu recomeçaria.
— Espere aqui – disse ela. – Não se mexa.
Valentina correu pra dentro da casa amarela de dois andares, quando ela desapareceu da minha visão fiz questão de dar um grito de dor para me aliviar. Minha mão esquerda apertava o local do sangramento. Eu não conseguia ver o tamanho do ferimento e estava visivelmente apavorado.
— Ed! – Gritou Wallace.
Vi ele se aproximando e segurando o guidão de sua bicicleta. Quando chegou mais perto pude ver que ele trazia somente o guidão, o resto da bicicleta havia sumido. Uma fina gota de sangue que escorria da sua testa
— Também não dei sorte – disse ele. – Mas com certeza estou melhor que você, caralho! Teu braço tá muito bichado.
— Ah, obrigado Wall, tua sensibilidade me comove.Valentina saiu pelo pequeno portão carregando alguma coisa nas mãos. Nossos olhares foram automaticamente pra ela. A pequena corridinha que ela deu até onde eu estava fazia seus cabelos dançarem no vento. Segurei a expressão de dor.
— Como você está se sentindo? – Perguntou ela. – Ah, olá Wallace.
— Como ela sabe meu nome? – Wallace sussurrou baixinho perto de mim, mas acredito que ela tenha conseguido ouvir.Valentina havia trazido um pequeno recipiente de alumínio com agua quente, molhou o algodão na agua e começou a passar no meu braço de leve. Não consegui evitar o pequeno grunhido de dor, Wallace riu, mas Valentina permaneceu em silêncio.
— Não é tão grande – disse ela, referindo-se ao ferimento.
— Vindo do Ed, não me espanta tudo ser pequeno – zombou Wallace.
— Cala a boca Wall. – Falei.Valentina passou algum tipo de remédio que ardeu um pouco, mas segurei as reclamações. Ela colocou a gaze e fez um belo e delicado curativo, tinha jeito com essas coisas.
— Acho que está bom – disse ela. – Mas a sua camiseta está rasgada, quer que eu pegue uma de meu pai emprestada? – A tentação de pegar a camiseta só pra ter um motivo a mais para encontra-la mais uma vez era grande, mas antes que eu percebesse já tinha negado com a cabeça.
— Não, obrigado. Eu pego uma do Wall.Wallace me deu uma pequena cotovelada, que eu fingi que não aconteceu. A expressão de Valentina era de pura preocupação, embora quando penso nisso hoje em dia concluo que não havia nada para se preocupar.
— Muito obrigado – eu disse.
— A gente se vê, aventureiro – ela deu um sorriso tímido, tinha as duas mãos entrelaçadas e se virou para começar a andar em direção a sua casa. Fiquei observando até que ela sumisse totalmente do meu raio de visão.
— Seu idiota – Wallace me deu um soco no braço que estava bom. – Ela estava totalmente afim de você.
— Não fala besteira.
— A camiseta era a desculpa pra você subir lá com ela e vocês mandarem ver, seu idiota. Sério, eu nem te conheço.
— Cala a boca Wall.
— E eu não vou te emprestar merda de camiseta nenhuma, te fode.Então nós seguimos para casa em silêncio carregando o que restou de nossas bicicletas. Eu fiquei apenas pensando em Valentina e suspeitei que Wallace também estava pensando nela. O fato é que mesmo com dor, fui pra casa sorrindo.
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88Hz
AventureUma garota que foi embora, três amigos inseparáveis, uma promessa e um velho rádio. 88Hz conta a história de Eduardo Caravela, um jovem de dezessete anos que, depois que o amor de sua vida vai embora, conta com a ajuda de seus melhores amigos para...