Dois meses depois de ela ir embora
Eu ainda não havia falado com Wallace ou Ariane depois dos acontecidos da praia. Faltei a escola e ainda estava usando um curativo no nariz. Já fazia dois dias, mas ainda doía. Tentei ligar para casa de Wallace, mas ninguém atendeu. Comecei a reler Dom Casmurro, mas aquilo me deixava deprimido demais. Ler as palavras que tanto encantaram a garota da minha vida doía muito mais do que cem narizes quebrados.
Meu pai estava trabalhando, minha mãe insistia que eu não poderia sair de casa — uma espécie de castigo — depois da surra que eu havia levado dos "assaltantes". Decidimos não levar a estória de Ariane ter me batido em frente para que a Ari continuasse frequentando minha casa. "Isso pra tu aprender a não sair de casa sozinho, e se tu tivesse morrido? O que você estava pensando?" Passei umas duas horas ouvindo suas queixas e reclamações até que eu pudesse finalmente descansar.
Naquele começo de tarde em que tinha faltado a escola, minha mãe estava na cozinha fazendo uma encomenda de bolo, decidi ligar aquele meu velho rádio.
Abri a maleta e liguei na tomada, precisei assoprar o pó que havia se acumulado nos últimos dias. Liguei e o botão redondo começou a se mexer. Assim que coloquei os fones de ouvido a estática e pequenas vozes incapazes de serem ouvidas se misturavam como uma onda que atingia uma praia cheia de gente conversando distraídas.
Então o silêncio.
— Oi.
— Olá, quem fala?
— Não lembra de mim, Eduardo? — ela riu. Você soa o mesmo.Não soube o que dizer. Não conhecia aquela voz de mulher, nunca tinha ouvido na vida. Hesitei um pouco antes de responder.
— Desculpe, quem fala?
— Rosa. Lembra de mim?Eu havia conversado com uma garota chamada Rosa pela Dinâmica, porém ela uma garota de 16 anos. Aquela mulher parecia bem mais velha. Estranhei muito.
— Você se lembra de mim, certo?
— Sim. Rosa.
— Vejo que não faz muito tempo pra você.
— Com que idade você está?
— Trinta e quatro. Escute, você ganhou o Dinâmica de meu Pai, certo? Valnei.Valnei era o velho de Rio Grande que havia me dado o rádio, sim.
— Sim.
— Eu estava lá? Eu estou viva?Ele não havia mencionado que tinha uma filha, morava sozinho com suas coisas antigas, mas fiquei com medo de falar isso pra ela.
— Então era você! — Menti.
Ela riu.
— Que alivio. Achei que essa doença ia me abater.
— Não vai.Um frio subiu pela minha espinha. Havia a possibilidade de eu estar falando com uma pessoa morta. Como isso era possível?
— Já descobriu como a Dinâmica funciona?
— Não. Você ficou de me contar, lembra?
— Ah sim, faz muitos anos.
— Então diga.
— Não acho que você vá gostar dessa história.
— Conte.
— Você já olhou no espelho e por uma fração de segundo viu algo que não estava lá? Um borrão, uma sombra. Qualquer coisa.
— Acho que sim.
— Isso porque os espelhos são janelas para o outro lado. Para o mundo dos mortos. Mas uma vez existiu um espelho que era mais que isso. Ele era uma porta.
— Não tô entendendo.
— Um homem chamado Hamund Kovenwich, que vivia no norte da Noruega por volta de 1603, seu único oficio era fazer espelhos e vende-los aos povos. Mas acontece que Hamund não era um homem fácil de se lidar, pra falar a verdade ele era um dos piores de toda Noruega. Brigava por onde passava, adorava arrumar confusão. Casou-se com a jovem Ludwig, na época ela tinha apenas 16 anos, ele, 38. Um dia ele recebeu uma encomenda de uma mulher poderosa, conhecida como A Princesa Hannah. Ela queria um espelho especial para dar de aniversário a sua filha. Hamund fez dezenas de espelhos, Hannah não gostou de nenhum. Hamund, que já tinha problema com bebida, começou a beber mais e mais. Batia na esposa sem nenhum motivo, matava nos animais da sua fazenda cruelmente só pra aliviar sua raiva.— Onde essa história vai chegar? — Perguntei.
— Paciência. Hamund estava terminando o corpo de ferro do seu 34º espelho para a princesa, tinha o formato de vários caules de rosas com espinhos que se desabrochavam em duas rosas de ferro na ponta. Foi quando sua esposa veio conversar com ele. "Não faça mais espelhos pra essa mulher", "Não vale a pena", "Ela nunca vai ficar feliz com um espelho seu". Ele ficou furioso. "Nunca vai ficar feliz com um espelho meu? Você vai ver". Hamund matou sua esposa com a estrutura de ferro do espelho. Foi apenas um golpe certeiro na cabeça de Ludwig, que desabou no chão já sem vida. Hamund tinha raiva, mas não se arrependeu do que fez. Usou o sangue da esposa morta pra fazer o espelho e levou para a princesa. "É maravilhoso" disse ela. "Como se chama?". Hamund sorriu e respondeu "O Segredo da princesa Hannah". É engraçado, porque as histórias dizem que ele morreu de velho. É irônico como algumas pessoas tão horríveis vivem tanto, né?— É uma história horrível. Mas o que isso tem a ver com o rádio?
— Ah sim, claro. O sangue de Ludwig e seus restos mortais fundidos em toda a estrutura do espelho não deixaram que ele fosse comum. O espelho e tornou mais que uma janela, ele se tornou uma porta. No quarto da filha da princesa Hannah eram ouvidos barulhos, coisas caíam no chão e vozes sussurravam. Ninguém sabia ao certo o que acontecia. A verdade era que toda as almas perdidas no limbo estavam saindo do espelho e atravessando pra nossa realidade. Estavam entre nós.— E o que aconteceu? Descobriram?
— Só duzentos anos depois. Dois homens que juravam ser pesquisadores paranormais pediram pra entrar no castelo em busca de uma fonte de energia. Foi quando eles acharam o espelho. A tataraneta de Hannah, Clotilde perguntou se eles deveriam quebrar o espelho e acabar com a passagem, mas eles responderam que não. "Se destruir a única porta que ele tem, todas as almas perdidas vão estar bravas com você. Você definitivamente não quer que isso aconteça, certo?". Teria sido ótimo se ela tivesse ouvido os conselho dos dois rapazes, que trancaram o quarto no alto de uma torre. Dois dias depois Clotilde ordenou a um empregado que subisse até lá e destruísse o espelho, acreditando que se não fosse ela a destrui-lo, nenhuma alma iria ficar brava com ela. O que Clotilde não sabia é que quando os espíritos estão fora do corpo, podem ver mais que nossas ações. Eles podem ver nossas intenções e pensamentos. Clotilde e todos os outros moradores do castelo acabaram morrendo de forma desconhecida nas semanas que se sucederam a quebra do espelho. Ela, caiu da escada. Seu marido, sufocado com o próprio vomito durante a noite. Seu casal de filhos pularam da torre mais alta. Os únicos poupados foram os empregados.— Eu não sei se eu acredito nisso...
— Oitenta e três pedaços do espelho existiam. Nenhum grande demais pra uma alma passar, mas suficientemente grandes pra mandar um sinal.
— Então...
— O Dinâmica está conectado com o mundo dos mortos.
— Então você está...
— Não. Bem, sim. Um dia eu vou estar, você também. É que no mundo através dos espelhos não existe tempo. O passado e o futuro se misturam e se fundem em um só. É por isso que o rádio se conecta a qualquer ponto do tempo. Se você abri-lo agora, vai encontrar um pedaço de espelho no formato de um triangulo. Sugiro que não abra nem nunca olhe diretamente para a pequena lasca. Nunca se sabe o que se pode ver. Mas é ele que reflete o sinal e joga novamente pra nossa realidade, funcionando como uma antena que recebe e manda sinais através dos mundos.
— Isso é... incrivelmente mórbido.
— Existem três lascas desse espelho atualmente no mundo, quase ninguém sabe destes segredos, embora homens de preto ofereçam uma fortuna por qualquer informação que tenhamos sobre eles. Dizem que eles já até tem a armação original com as rosas e tudo. Não se sabe muito bem quem construiu o rádio, mas sabia exatamente o que estava fazendo.
— Tudo isso parece loucura.
— Às vezes a loucura é a coisa mais provável.

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88Hz
MaceraUma garota que foi embora, três amigos inseparáveis, uma promessa e um velho rádio. 88Hz conta a história de Eduardo Caravela, um jovem de dezessete anos que, depois que o amor de sua vida vai embora, conta com a ajuda de seus melhores amigos para...