Quatro meses antes de ela ir embora
A primeira coisa que encontrei quando cheguei da escola foi a sua carta colocada delicadamente na caixa de correios. Depois de Valentina, adquiri o hábito de sempre verificar por correspondências. E era sempre um momento ótimo quando eu via aquele envelope branco com rosa, embora essa não fosse a sua cor.
"Caro Aventureiro,
Hoje quero lhe propor um desafio, será que você topa? Quero saber se seu espirito de aventura ainda continua firme e forte, por isso você vai ser obrigado a encarar uma série de enigmas e quem sabe, se você completar todos os desafios e chegar até o ponto final, você ganhe uma recompensa.
A primeira pista: Nosso primeiro beijo.
Sua enfermeira cuidadosa."
É obvio que eu sabia exatamente o lugar do nosso primeiro beijo. A fábrica de tecidos do porto. Subi até meu quarto e joguei a mochila no chão, guardei a sua carta dentro de um livro, tirei meu uniforme da escola e sai correndo em direção à velha fábrica. O clima estava nublado e ao que tudo indicava, choveria mais tarde. Fui correndo por entre as ruas de paralelepípedos. Fui com o passo acelerado, logo que cheguei encarei o portão fechado. Imaginei Valentina pulando aquele muro horas antes, e foi isso que eu fiz.
Sem Valentina para eu tentar impressionar, pular o muro foi fácil, mas confesso que tive muito mais medo de ser pego, afinal aquilo ainda era propriedade particular. Cai com os dois pés no chão do outro lado. Comecei a andar por entre os paralelepípedos que tinham vegetação crescendo entre os vãos. Encontrei a porta que meses atrás eu havia arrombado para impressiona-la, estava apenas encostada.
Adentrei as instalações da Companhia De Fiação Pelotense e um frio subiu pela minha espinha. Sem a áurea suave de Valentina, aquele lugar parecia cenário de um filme de terror. Andei devagar por entre as enormes máquinas de costura e os outros maquinários empoeirados que eu não fazia ideia de para que serviam. Tentei refazer meus passos pelas salas e anexos da última vez que estivemos ali, e me perdi algumas vezes, mas enfim consegui. Quando entrei na pequena salinha onde havíamos dado nosso primeiro beijo, senti o cheiro dela. Ela cheirava à Dama-da-noite. Sua carta estava no chão, mas não caída, foi posicionada com todo carinho. Abri.
"Muito bem Aventureiro,
Mas vamos combinar que essa foi simplesmente muito fácil, né? Nosso primeiro beijo. Aliás, se você não conseguisse chegar até ai, nosso relacionamento acabaria por aqui, mas se você está lendo, então está tudo certo. Então agora eu quero complicar um pouquinho, posso? Ah, você já está acostumado a eu complicar sua vida. Risos. Enfim, estou com vontade de comer um churrasco...Sua Enfermeira"
Não entendi de imediato. Um churrasco?
Claro que, minutos depois a ficha caiu. Ela devia estar falando de uma fábrica, mas qual seria? Corri novamente para casa com a cabeça cheia de dúvidas. Um churrasco. Quando lá cheguei, encontrei a minha mãe comendo um bolo sozinha, seu rosto todo sujo de merengue. Ela sorriu.
— A cliente cancelou — explicou-se. — Seria um pecado não aproveitar.
Eu ri, porém tentei focar em Valentina.
— Mãe, onde vocês compram carne pra fazer churrasco?
— Que pergunta é essa, menino? Pra que tu quer saber?
— É pra um trabalho da escola — menti.
— Bom, seu pai geralmente compra no Frigorifico Casarin... — ela mal havia terminado a frase e eu já estava correndo em direção à rua. O frigorifico ficava no campo do Fátima, era uma longa corrida até lá. Abri a garagem e olhei a bicicleta de barra circular de meu pai, nunca gostei dela, era grande e pesada, mas precisava agora. Pedalei depressa até sair do porto, continuei na avenida cidade de rio grande e depois adentrei em direção ao bairro da Balsa.
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88Hz
AdventureUma garota que foi embora, três amigos inseparáveis, uma promessa e um velho rádio. 88Hz conta a história de Eduardo Caravela, um jovem de dezessete anos que, depois que o amor de sua vida vai embora, conta com a ajuda de seus melhores amigos para...