Angústia

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Três meses antes de ela ir embora

Novembro chegou e trouxe consigo os dias mais frios de 1990. Meu aniversário se aproximava e eu passava as madrugadas frias com uma lanterna embaixo das cobertas lendo os livros que Valentina me emprestava. Sempre ficávamos a tarde juntos, as vezes na velha garagem, mas quase sempre andando pelas ruas do porto. Ela não era uma garota que gostava de ficar parada. Ela era a vida e o sangue corria em suas veias. Seu pai não permitia que ela dormisse na minha casa, eu acredito que porque a mãe de Valentina havia engravidado muito cedo, e ele não queria o mesmo destino para a filha. Nunca conversamos sobre isso. De qualquer modo, na falta da presença física dela, me aventurava pela presença do seu espirito que ficava mergulhado os livros, em cada palavra ou trecho destacado com um marca-texto rosa. Engraçado, rosa nunca foi a cor preferida dela. Mas qualquer coisa combinava com o seu sorriso.

Acordei cedo como de costume. Eu gostava das férias, mas não conseguia dormir até tarde. Verifiquei a caixa de correios em busca de alguma carta dela, não havia nenhuma. Tomei café com meus pais, apesar de que Augusto, meu pai, engoliu tudo rápido e saiu correndo por estar atrasado.

— Tchau querido, até mais tarde — se despediu minha mãe.

Continuei em silêncio. Não que eu estivesse triste ou mal, mas é que as vezes eu precisava me guardar para mim mesmo. Minha mãe perguntou algumas vezes se eu estava bem, fiz questão de dizer que sim. Afinal, eu estava.

Depois do almoço decidi ir até a casa de Valentina. Eram raros os dias em que ela não dava sinal de vida e eu nunca gostava de ficar muito tempo longe dela. Fui de pé, cheguei em poucos minutos. Quem atendeu a porta foi seu irmão, Marcelo.

— Olá Eduardo, pode entrar. A Val tá na cozinha, já estou de saída.

Agradeci e Marcelo saiu pela porta. Quando adentrei à cozinha vi primeiro o Seu Luiz, pai de Valentina. Ele mexia uma panela enorme no fogão com uma colher de pau. Valentina cortava alguns legumes na mesa, ela foi a primeira a me ver. Sorriu.

— Mas tchê, tá precisando de mais tempero isso aqui, né? — Disse Luiz, antes mesmo de me ver. Valentina veio ao meu encontro e me abraçou apertado. — Olá Eduardo, como vai?
— Quer nos ajudar? — Perguntou Valentina.
— Claro — respondi de imediato.

Passamos a hora seguinte preparando no total três panelas enormes de sopa. Ajudei a cortar as espigas de milho e descasquei batata. Jogamos papo fora e aproveitei para conhecer um pouco mais sobre o meu sogro.

Luiz Camargo Macedo era um homem magro, tinha um sorriso triste que não convencia ninguém. Seu rosto era uma mistura de queimaduras do trabalho debaixo do sol, as rugas que apareciam e seu bigode castanho. Em todas as vezes que me encontrei com ele, usava uma boina marrom em sua cabeça, como se fosse um objeto da sorte. Não parecia que tinha funcionado, a vida de Seu Luiz era um misto de tristeza e saudades. Conheceu a mãe de Valentina, Maria Valentina — o nome da filha era em homenagem a mãe — muito cedo, quando tinha apenas dez anos de idade.

— Me apaixonei por ela desde que vi seus olhos pela primeira vez. — Dizia ele.

Luiz sorria ao relembrar o tempo de sua infância e as aventuras com o amor da sua vida. Eles eram vizinhos e moravam em duas fazendas. O pai de Luiz era o melhor amigo do pai de Maria, por isso nunca se preocuparam se o relacionamento deles seria aceito. Eles deram o primeiro beijo quando ele tinha quatorze anos, ela, treze.

— Foi debaixo de uma cerejeira de meu pai — ele sorria. — Lembro que não fechei os olhos, fiquei olhando para o chão enquanto a beijava, observava as folhas rosas caídas no chão. Lembro também do perfume, tanto do lugar quanto de Maria. Acho que foi um dos únicos momentos da minha vida que o mundo todo estava equilibrado. Quando o beijo acabou e ela se afastou, quando encarei aqueles belos olhos, eles refletiam a cor rosa da árvore naquela íris infinita.

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