A Invasora

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Cinco meses antes de ela ir embora

Já fazia quase um mês que havia conhecido Valentina. Cartas em seu nome sempre chegavam na minha casa e eu as respondia do meu jeito. Era impossível negar que aquela garota havia me enfeitiçado por completo. As vezes saíamos para andar sem um rumo certo entre as ruas do porto. Ela tinha aquele sorriso bonito e atitude de mulher, era rebelde, porém, delicada. Um estranho equilíbrio perfeito de qualidades e defeitos.

— Tenho algo pra você – disse ela abrindo a mochila. Demorou alguns segundos até puxar um livro de capa verde ali de dentro. – Tome. Eu tinha outro melhor, mas emprestei pra alguém e não me devolveram, de qualquer jeito esse vai servir do mesmo modo.

Peguei o livro nas mãos, era de capa dura. Uma pequena foto de um homem barbudo usando óculos ilustrava a capa, li as grandes letras da cor branca.

"Os Grandes Clássicos Da Literatura – Dom Casmurro, Campanhas Jornalísticas"

— Parece... interessante – menti.
— Eu sei que você não gostou, não sou boba – disse ela sorrindo. – Mas é porque você não leu. Quero que leia Dom Casmurro, aliás, ordeno que leia.
— Vou ler, prometo.

Estávamos em frente ao portão da antiga companhia de fiação e tecidos pelotense, agora desativada e aos poucos se deteriorando com o tempo. Não demoraria muito para aquele lugar se transformar em um saco de memórias.

— O que será que tem lá dentro da fábrica? – Perguntou ela.
— Não sei, talvez lixo.
— Vamos descobrir – disse ela me puxando pela mão.
— Por que você sempre quer invadir algum lugar? – Perguntei enquanto ela escalava o muro com uma facilidade incrível. A verdade é que eu sabia porque ela era assim, era curiosa como seus cabelos eram teimosos, precisava fugir da sua própria vida para que não se sentisse totalmente triste.
— Esse momento no futuro será somente uma memória na sua mente de qualquer jeito. Você só tem que decidir se ela vai ser boa ou ruim — ela sorriu.
— Tá certo, tomara que seja boa então. — E foi.
— Minha mãe trabalhou aqui.
— O que aconteceu com sua mãe? – Perguntei enquanto subia no muro, era mais difícil do que parecia quando vi ela pular.
— Morreu – disse ela, como se não fosse nada. – Mas já faz tempo, pra dizer a verdade eu nem lembro direito como ela era. Meu irmão sustenta a casa agora pois meu pai tem problema de coração, eu cuido de cachorros as vezes pra ganhar alguns trocados, mas assim que eu fizer dezoito também quero ajudar com um emprego de verdade.
— Sinto muito – eu disse. Ela já andava no pátio da fábrica na ponta dos pés, era graciosa.
— Por aqui – indicou ela, apontando para uma porta. – E sua mãe, o que aconteceu com ela?
— Nada – eu disse, ela girou a maçaneta porem a porta não abriu. – Minha mãe está bem – ela deu dois passos para trás e observou a porta de baixo para cima.
— Acho que dá pra arrombar – disse ela. – Chuta a porta.

Acredite se quiser, mas invadir locais e quebrar portas não era algo tão comum pra mim naquela época. Na verdade eu nunca faria algo assim, mas aquela garota poderia me convencer a pular de um prédio. Me afastei alguns passos e respirei fundo, corri na direção da porta e bati com o meu ombro e toda força que eu tinha, a porta cedeu e eu cai por cima dela, no lado de dentro da fábrica.

— Isso ai – disse ela batendo palmas.

Me senti incrivelmente forte, e bem, apesar de eu ter arrombado uma porta de 1910 que provavelmente já estava podre. Sorri.

— Uau – disse ela.

Virei para observar o local. Era grande e escuro, porém entre as telhas ficavam algumas aberturas que deixavam entrar fios de luz dourados que se infiltravam na escuridão. Pequenas partículas de poeira flutuavam nos feixes de luz do sol que invadiam o local. Tinha cheiro de madeira velha, mas não era um cheiro ruim. O local ainda tinha várias maquinas de costura e suas mesas de ferro. Valentina começou a andar por entre as mesas deixando seus dedos tocarem com sutileza as máquinas ali paradas.

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