O Suícidio

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Dois meses e sete dias depois de ela ir embora

— Você matou seu padrasto? — Perguntei. — Eu não acredito.
— Eu tive que fazer.
— Tá certo. Foi legitima defesa, ele te atacou.
— Eu bati com a marreta na cara dele até desmanchar, Ed. Tu acha que eles vão pensar que isso foi legitima defesa?
— Droga. Só tem uma pessoa que pode nos ajudar.
— Ariane.
— É.

Saímos sem fazer barulho, eu tinha um estranho sono que não deveria estar ali. Meus olhos pesavam e meu estomago estava embrulhado. Você precisa estar com seus amigos pro que der e vier. Pensei. Não tínhamos tempo a perder por isso corremos na rua até a casa dela. Ariane estava sentada na frente de casa quando viramos a esquina correndo.

— Ei ei ei, o que foi isso? — Ela jogou o cigarro no chão. — E você Wallace, deveria estar de repouso.
— Aconteceu uma coisa. Precisamos da tua ajuda.

Levamos todo o caminho até a casa de Wallace explicando para Ariane tudo que havia acontecido. Ela apenas escutava com atenção e balançava a cabeça positivamente. Quando chegamos na frente da casa dele Ariane parou e acendeu mais um cigarro.

— Só tem um jeito — disse ela.
— Qual?
— Olha bem, o que a gente vai fazer aqui é crime. Wallace, até agora tu não cometeu crime nenhum, foi sim legitima defesa, embora não sabemos se a polícia vai acreditar, né? Puta ideia boa sua de destruir o crânio do seu padrasto. Será que tem prêmio pra isso? Enfim... Se a gente continuar, vai ser crime.
— Vamos logo.
— Seu padrasto vai cometer suicídio.
— Como assim?
— A gente vai fingir que ele cometeu suicídio.
— Acho meio impossível alguém bater com a marreta na cara repetidas vezes mesmo depois de morto.
— Cala a boca. Wall, pega as chaves do fusca, tá funcionando, né?
— Não, ele estava usando um carro do trabalho, do porto.
— Vamos usar ele mesmo. Ed, vem comigo. Vamos pegar o corpo.

Ela jogou o cigarro no chão e começou a andar em direção a casa. Eu a segui. Logo depois que entramos pela porta foi possível ouvir o choro da mãe de Wallace. Ariane foi até a porta do quarto dela e bateu.

— Dona Neida?
— Sim? — Ela abriu uma fresta na porta.
— Nós vamos nos livrar do corpo. Tu vai precisar limpar tudo. Consegue?
— Acho que... acho que sim.
— Ótimo. Ed, vamos ver o estrago.

Assim que entramos no quarto do Wallace a imagem que nos contemplava era horrível. O corpo estava jogado no chão e tudo parecia sujo de tinta vermelha. Senti vontade de vomitar, o rosto de Afonso estava desfigurado. Parecia uma bola furada e vermelha.

— Credo — eu disse. — Que nojo.
— Isso não é hora pra ter nojinho. Me alcança aquele cobertor. — Ariane disso isso, mas a sua expressão acabava dedurando que nem ela estava tão à vontade com aquela situação com ela queria parecer.

Tirei o cobertor da cama e joguei para Ariane. Ela começou a enrolar o corpo de Afonso nele. Mais sangue saiu do seu rosto, quando ela terminou o padrasto de Wallace parecia um churros de sangue.

— Me ajuda a colocar no carro.

Segurei por uma extremidade e ela pela outra. O homem era pesado. O sangue que escorria sujou a camiseta de Ariane, mas ela pareceu não se importar.

— O carro tá pronto? — Gritou ela.
— Sim. — Wallace respondeu.

Levamos o corpo até a rua, a porta do carro já estava aberta e colocamos Afonso no banco de trás. Ariane limpou as mãos uma na outra depois passou no banco do carro.

— Ed, acho que você não quer ir no banco de trás, né?
— Não mesmo.
— Você vai precisar pegar o carro do seu pai, pra gente voltar depois. Consegue?
— Acho que sim.
— Ótimo. Só um minuto.

Ariane entrou novamente na casa e eu a segui. Ela falava com a mãe de Wallace.

— Não se preocupe, tá? Vocês não fizeram nada de errado. Esse cara era um monstro. Ele teria matado vocês dois, se não agora algum dia. Eu sinceramente não queria que ele morresse, queria que apodrecesse na cadeia, vivo. Pensando todos os dias em tudo que ele fez, mas infelizmente isso aconteceu. De qualquer jeito, vocês só se defenderam. Se você puder limpar isso tudo, bem, não se preocupe com ele. Nós vamos dar um jeito.

Ariane voltou forçando um sorriso.

— Agora vamos.

Eu e Wallace nos apertamos no banco da frente até a minha casa, onde eu desci e consegui pegar a chave do carro sem fazer barulho. Não sei ao certo se meu pai não percebeu ou se percebeu e decidiu não falar nada. Minutos depois Ariane dirigia o Passat do porto e eu dirigia o chevette do meu pai. Demorou alguns minutos pra eu perceber pra onde estávamos indo: A velha ponte de rio grande.

Qualquer carro era proibido de passar pela ponte por ela não ser considerada segura e tinha chances de desmoronar a qualquer momento. O flash de um dos meus últimos dias com Valentina naquele lugar veio a minha mente. Senti um aperto no peito. O carro que Ariane dirigia subiu primeiro até o centro da ponte, eu parei o chevette na entrada.

Desliguei o carro e saí pela porta. Um vento frio balançava meu cabelo. Segui as luzes do Passat no meio da ponte. Caminhei sem pressa com as mãos no bolso. O vento batia em mim. Nada mais era o que um dia foi.

— Ed! — Ariane gritou.
— Tô indo.

Quando cheguei lá já estava tudo pronto. Afonso já estava posicionado no banco do motorista, seu rosto deformado pressionado contra o volante. O carro estava ligado e em porto morto.

— Todos prontos? — Perguntou Ariane.
— Sim.
— Claro.
— Me ajudem.

O rádio do carro ligou sozinho. A música The Rain Song do Led Zeppelin começou a tocar. Empurramos o carro e um segundo depois ele já estava descendo pro outro lado da ponte sozinho. A música foi ficando cada vez mais baixa. O carro foi virando pra direita até que bateu na mureta de proteção, quebrando-a e caindo na agua. O barulho foi estrondoso. Nos entreolhamos.

— Ok. Nunca forjar um suicídio e jogar o carro de uma ponte. Checado. — Disse Ariane rindo.
— Só tu consegue fazer piada de uma merda dessas.
— O que é a vida sem uma piada?

No dia seguinte a manchete de todos os jornais foi a mesma. "Homem comete suicídio na antiga ponte de Rio Grande". Ninguém contou aos jornais o que o homem havia feito com o Wallace, mas na versão dele pra polícia Afonso havia atacado mais uma vez, Wallace acertara ele com uma marreta e então ele fugira. Não houve investigação. Sua mãe confirmou tudo.

Wallace finalmente apresentou seu namorado pra mim. Otavio era um cara legal, gostava das mesmas coisas que a gente. Quem já não era um cara muito legal era eu. Alguma coisa havia morrido dentro de mim e nunca mais renasceria.

Um certo dia liguei o Dinâmica, eu estava tentando me conectar comigo mesmo. A mensagem que eu queria passar era "O Padrasto do Wallace vai morrer." Quando me conectei comigo mesmo o chiado era muito alto.

— Quem tá falando? — Perguntei.
— Como isso é possível? — disse a minha voz do outro lado da linha.
— Eu não acredito — me ouvi dizer do outro lado da linha.

Finalmente tinha conseguido me conectar comigo mesmo.

— Escute — Eu disse. — Não temos muito tempo. O padrasto do Wallace vai morrer. Não tente impedir.
— Como é? O Wallace vai morrer? Como é? Como? — O chiado era muito alto— Como? Como isso? Me diz! O que eu faço?
— Não! O Padrasto dele. Vai tentar matar o Wallace!

Mas a ligação já tinha caído. Só então percebi que a mensagem que eu havia recebido havia chegado até mim fragmentada. A frase nunca fora "Wallace vai morrer". Suspirei aliviado.



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