Quatro meses antes de ela ir embora
Nem tudo eram flores no meu relacionamento com Valentina, grande parte por culpa exclusivamente minha. Às vezes eu me sentia desconexo ao mundo, perdido em pensamentos e vez ou outra me perdia de tudo.
— Du? Tá me ouvindo? — Chamou ela.
— Tô sim. Foi mal.
— O que você acha?
— Sobre o que?
— Viajar pelo mundo, poxa. Você nunca me ouve.Eu não havia prestado atenção, mas ela já havia me falado por seu sonho de viajar o mundo apenas com uma mochila nas costas e um violão. Ela insistia que queria que eu aprendesse a tocar, coisa que eu até acabei fazendo.
— Acho ótimo.
— Você é sempre tão sem graça. Vem, vamos fazer algo divertido.Ela se levantou do sofá e me puxou pelo braço. Se eu bem conhecia Valentina, nem ela mesma sabia onde estávamos indo. Ela apontava em uma direção e o mundo conspirava a seu favor para fazer algo incrível acontecer, outras vezes, ela mesmo era a coisa incrível que acontecia. A tarde estava calma e um vento leve batia em nossos rostos. Os sapatos de Valentina faziam um barulho seco a baterem na calçada de pedra.
— Onde vamos? — Perguntei para quebrar aquele silêncio.
— Pra onde o vento nos levar.E o vento nos levou para Ponte Alberto Pasqualini, também conhecida como A Velha Ponte do Rio Grande. Era uma ponte que ligou Pelotas à Rio Grande até 1974, depois disso foi interditada e condenada, mas ninguém nunca colocou ela pra baixo. Desde então a ponte fica lá, vazia, como uma lembrança do passado.
Atravessamos os velhos trilhos, apesar de ativos, o trem só passava duas vezes por dia. Às cinco da manhã e às cinco da tarde. Andamos pela trilha de terra até que chegamos ao começo da ponte. Conforme andávamos e íamos cada vez mais para o alto, era possível ver o chão lá embaixo pelas rachaduras. Não foi à toa que ela foi desativada.
— Venha.
Valentina me levou até o meio da ponte, a parte mais alta. Sentou-se onde não havia parapeito, deixou seus pés soltos no ar.
— Vem, senta — disse ela.
Sentei sem olhar pra baixo. Meus pés balançavam em uma altura de trinta metros. Nada me separava da morte se eu caísse. Senti meu coração acelerar. Valentina sorriu. Forcei um sorriso de volta. O vento batia em seus cabelos e os traziam para vida, tremulavam para todos os lados, cobrindo e descobrindo seu rosto.
Valentina tinha um desejo incontrolável por aventura.
Já eu, seguia sua maré.
Eu tinha um incontrolável desejo por Valentina.Dali podíamos ver a nova ponte e os carros passando de um lado para o outro. Mais à frente estava a velha ponte ferroviária. A parte do meio se erguia para os navios passarem. Dizia a lenda que um dia a ponte estava erguida na hora do trem passar. O trem caiu no canal São Gonçalo. Nunca soube se essa história era real.
— Eu gosto de vir aqui quando preciso pensar — ela disse. — É calmo.
— Você nunca me contou.Ela riu.
— Eu sou um iceberg, tudo que você de mim é o que está na superfície.
Já eu, era aquilo. O mais transparente que eu podia ser, o mais sem graça que alguém conseguiria ser. Mas ela estava comigo e isso que importava.
— Às vezes eu sinto que meu mundo está desmoronando — disse Valentina. — Ouço meu pai chorar quando cai a noite. Ele sente tanta falta da minha mãe. Meu irmão, Marcelo, trabalha feito um condenado para nos ajudar. Não vejo a hora de conseguir um emprego. Ed, você sabe o que poderia fazer meu pai feliz?
Desejei que aquela fosse uma pergunta retórica, mas ela realmente queria saber. Infelizmente eu não sabia. Pensando bem agora, se eu tivesse dado uma resposta diferente à ela nesse dia, talvez tudo tivesse sido diferente.
— Não sei, desculpa.
— Tudo bem — ela abaixou a cabeça. — Acho que a tristeza passa, não? Nada pode durar pra sempre.
— Pois é.Eu sempre tive o dom de não saber o que falar.
— O universo faz cada curva, Ed. Numa dessas a gente encontra a felicidade.
Já Valentina, tinha todas as palavras certas na ponta da língua.
— Eu te amo — disse eu
— Também te amo — ela sorri.De repente, ela levanta e sai correndo. A essa altura do nosso namoro eu já estava acostumado com isso. Ela tinha essas epifanias, era elétrica. Tinha tanto dentro de si que precisava transbordar de algum modo. Corri atrás dela.
Ela engraçado o modo que aquela garota formidável corria, dava pequenos pulinhos e soltava risadinhas finas. Apesar de eu ser mais rápido que ela, sempre deixava ela correr na frente. Deixava que ela me guiasse pelo caminho de sua preferencia, só parava de correr quando ela parava. E ela parou em cima dos trilhos de trem. Ela respirava fundo e eu também, foi uma longa corrida.
— Um dia você me ganha — ela disse.
— Quem sabe um dia.Nos beijamos.
Ela afastou o rosto e sorriu. Seus dentes perfeitamente brancos e alinhados brilhavam. Senti vergonha dos meus dentes tortos, mas abandonei logo a ideia. Começamos a andar seguindo a linha do trem, ela se equilibrava no trilhos com cuidado para não cair. O sol batia em seus cabelos e fazia os fios negros brilharem.
— Sabe — disse ela. — Um dia eu vou pegar o trem. Quando ele passar, vou subir em um vagão e deixar que ele me leve pra bem longe.
— Quem sabe façamos isso junto, então?
— Pode ser. Só nós dois. Viajaremos o mundo, pegando trens e barcos escondidos. Valentina e Eduardo Caravela. Promete pra mim.
— Prometer?
— Sim. Valentina e Eduardo Caravela pelo mundo. Promete?
— Prometo.
— Você sabe que não pode quebrar uma promessa, né? — Ela me abraçou, seu rosto estava no meu ombro, tive a impressão de que ela estava chorando. Nunca vi Valentina chorar, era a pessoa mais forte que eu conhecia.— Eu prometo. E quanto ao seu pai, ele vai melhorar, não tenha dúvidas disso.
Ela sorriu.
— Você é meu anjo — ela disse.
Eu não era um anjo.
Era só alguém perdido.
Já ela, era a própria perdição.
E como eu amava estar perdido...— Agora quero ver se você me pega — e ela saiu correndo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
88Hz
AdventureUma garota que foi embora, três amigos inseparáveis, uma promessa e um velho rádio. 88Hz conta a história de Eduardo Caravela, um jovem de dezessete anos que, depois que o amor de sua vida vai embora, conta com a ajuda de seus melhores amigos para...