Escuridão

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 Um mês depois de ela ir embora.

Quando cheguei em casa já havia escurecido. Meu pai me encarou com aquela expressão que eu conhecia bem, porém não disse nada. Ainda tinha em mente aquela mulher da casa dos Bellinati, será que eu Fábio tínhamos imaginado aquilo juntos? Pouco provável, mas comparado com um fantasma, talvez fosse mais fácil de aceitar.

Subi as escadas com um passo acelerado, tinha costume de sempre descer ou subir escadas o mais rápido possível. Entrei no quarto escuro, joguei a mochila no chão e pulei na cama. Observei o teto que olhava toda noite de manhã, então lembrei do pequeno trem que roubei da casa dos Bellinati. Tirei-o da mochila e levantei para desposa-lo na escrivaninha em frente à janela. Coloquei-o ao lado do rádio e olhei através da janela. Não era tarde, porém a rua estava calma e silenciosa. Não haviam nuvens e a lua brilhava bela no céu encantando os olhares dos apaixonados.

Voltei a olhar para o rádio e sentei na cadeira. Aquele rádio, ali conservado depois de tantos anos, será que ainda funcionava? Soltei as duas trancas e abri a maleta, observando seu interior. Era bonito e bem feito. Puxei o fio de energia e o levei até a tomada, mas para minha surpresa o pino não entrava, tinha um padrão diferente. Talvez fosse europeu ou coisa assim, não sei ao certo.

Desci até a cozinha pra pegar uma faca, meu pai estava sentado assistindo uma partida de futebol e nem notou minha presença. Quando subi carregava a faca em minhas mãos. Cortei a ponta do cabo de energia do rádio, provavelmente estava destruindo uma peça rara, mas não pensei nisso no momento. Agachei-me perto da tomada e separei o fio positivo do negativo, respirei bem fundo antes de colocar na tomada.

— Não explode, por favor não explode – e coloquei.

Nada explodiu. Uma luz se acendeu dentro do rádio maleta e eu fui surpreendido, levantei e encarei o rádio. A pequena lanterna era móvel, presa a um fio fino, puxei e a prendi em um elástico na parte de cima da maleta, provavelmente feito para esse exato propósito. Apertei um pequeno interruptor vermelho e o resto do rádio ganhou vida, os pequenos instrumentos com ponteiros se acenderam bruscamente. Coloquei o fone de ouvido e um som agudo soava, sem nenhum chiado. Me senti como um piloto de avião prestes a decolar, o único botão que sobrou para mexer era o redondo giratório. Levei os dedos polegar e indicador com cuidado até ele e girei lentamente.

Um chiado sobrepôs o som agudo, conforme girava o botão o chiado ficava mais franco e mais forte, o sinal oscilava, como quando mexíamos na antena da televisão procurando o ponto certo pro sinal ficar forte. Tirei o dedo do botão giratório e ele continuou se mexendo sozinho. Levei a mão ao peito em um sinal de surpresa, mas preferi acreditar que o rádio era programado pra fazer isso mesmo, buscar um sinal sozinho. Apertei os fones contra meus ouvidos para ver se conseguia ouvir algo, e ouvi.

Entre o barulho de estática vozes ao fundo foram se formando em um volume muito menor do que os outros barulhos. Pude definir a voz de um homem e depois um tom musical. Voltei a olhar para o botão giratório e ele ainda se mexia, porém mais lentamente do que segundos atrás. Foi nesse momento que meu coração quase parou.

— Aqui é o seu piloto Juarez Bandeira, vocês estão no voo 112 com destino a Florianópolis, estamos agora sobrevoando o Rio de Janeiro à uma altura de trinta mil pés. O tempo aproximado para chegarmos ao nosso destino é de duas horas e quinze minutos, obrigado a todos por voarem conosco e tenham uma boa viagem.

— Eu não acredito – eu disse animado demais. O rádio havia funcionado, estava conectado com um sinal de um avião, aquilo era demais. Porém, como poderia ser possível um rádio tão velho conseguir se conectar com o sinal de um avião moderno?

— Voo 112, com quem estou falando? Identifique-se por favor. – A voz do piloto soou novamente. Me assustei e peguei o pequeno microfone com a mão direita.
— Você consegue me ouvir? – Perguntei
— Alto e claro, cambio.

Naquele momento eu não soube o que falar, uma sensação de nervosismo tocou conta de mim e eu desliguei o rádio. Todas as luzes se apagaram, exceto aquela pendurada na parte de cima da maleta. Aquilo era sem dúvidas uma loucura. Sorri sozinho no escuro.

Levantei da cadeira e passei a mão em meus cabelos, aquilo era sensacional. Eu tinha uma raridade em casa e além do mais ela funcionava. Me peguei pensando em quanto aquilo podia valer, então lembrei da minha promessa. Eu não poderia vender, não poderia trocar, eu tinha que proteger aquele rádio, mas por que ele precisava ser protegido? Eu não sabia de nada naquele momento.

Voltei a sentar na cadeira e liguei o rádio novamente. As luzes se acenderam e eu mexi no botão giratório. Enquanto o chiado e o barulho agudo brigavam no fone de ouvido eu olhei pela janela, havia começado a chover suavemente e as gotas escorriam pelo vidro. Aos poucos vozes começaram a se formar em meio ao chiado, como uma dança de sons que se mexiam com delicadeza.

— Quem está ai? Cambio.
— Olá – eu disse.
— Que é isso? – A voz era de um homem velho. – Estou falando com uma criança?
— Tenho dezessete, senhor – eu disse, um leve chiado pairava no ar, mas nada que impedisse a comunicação, o som era muito bom.
— Que tivesse vinte e sete, ainda seria uma criança.
— Você é piloto de avião? – Perguntei.
— O que? – O velho começou a rir. – Está de brincadeira comigo, jovem? Meu nome é Jossé Benza, sou guardião do farol da solidão.
— Farol da solidão? – Perguntei, na verdade eu já conhecia esse farol, fui com meus pais quando era mais novo e realmente gostava de lá.
— Isso mesmo garoto, fica em Mostardas. De onde você fala?
— Pelotas – respondi.
— E qual o motivo de você me contatar por esse rádio?
— Como sabe que eu estou usando um rádio? – Perguntei. O homem riu novamente como se eu acabasse de contar uma grande piada, eu não entendi.
— E de que outra maneira você entraria em contato com esse rádio? Usando um telefone? Eu duvido muito – disse o homem. Eu me perguntei se ele estaria usando um rádio igualmente velho ou algum novo, como aconteceu com o avião.
— Eu não sei.
— Escute aqui garoto, estou tentando ler o jornal de ontem, certo? Então se não for pedir muito, pare de usar o rádio do seu pai e me deixe em paz. Estou trabalhando – ele fez uma pausa. – É sério.
— Desculpe, eu não queria incomodar.
— Tudo bem – disse ele. – Pra falar a verdade é um pouco solitário aqui em cima, sabe? É alto e longe, tudo que eu ouço é o barulho do mar batendo nas rochas e as vezes eu tenho vontade de pular. Não é sempre, não é todo dia. Porém, às vezes quando chego pra trabalhar e encontro essa sala vazia, e sei que quando for embora e chegar em casa a minha casa vai estar vazia também, assim como meu peito, isso me faz pensar, que motivos eu tenho pra continuar?
— Não pule – eu disse. – Você vale muito. Uma vida vale muito.
— Você não entende, a vida tirou tudo que eu tinha.
— Me diga o que aconteceu, talvez eu possa te ajudar – eu disse no pequeno microfone. Não sabia onde aquela conversa daria, mas me senti preocupado de verdade.
— Realmente não sei no que ajudaria falar algo para um garoto de dezessete anos, mas na falta de alguém melhor – eu riu, uma risada triste. – Bem, fui casado durante vinte anos, e durante todo esse tempo tentávamos ter um filho. Quando ela finalmente engravidou, dez anos atrás, ela foi embora. Desapareceu, sumiu, me deixou uma carta dizendo que precisava ir. Um casamento de vinte anos, você acredita?
— Não. Não acredito, desculpa.
— Pois é, não lhe culpo. Nem eu entendo ou sei se realmente acredito. Talvez eu tenha feito algo, talvez eu fosse arrogante. Já faz tanto tempo que aconteceu que só o que sobrou foi a saudade, acredito que nem nas memórias posso mais confiar.
— Já tentou procura-la?
— Por muitas vezes. Infelizmente só é possível encontrar aqueles que querem ser encontrados – ele disse. – Mas a nossa mente as vezes também nos prega peças. Não sentimos saudade das pessoas, mas do que elas costumavam ser. Amamos fantasmas de amores que habitam apenas nossas memórias.
— Do que elas costumavam ser – repeti.
— Enfim, obrigado por emprestar seus ouvidos para o velho aqui. Desculpe se fui rude no início, mas não estou bem acostumado a conversar com estranhos.
— Não se preocupe. Talvez um dia eu volte a aparecer ai, já visitei uma vez quando eu tinha onze anos, adorei o lugar.
— Como é? – O velho riu. – Isso é impossível meu jovem. O farol foi construído ano passado.

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