A Primeira Carta

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Seis meses antes de ela ir embora

Eu mentiria se dissesse que passei a noite sem dormir pensando em Valentina, pra falar a verdade eu sempre tive uma certa facilidade para esquecer de tudo que existe. Eu estava deitado na minha cama, era umas onze da manhã de domingo e a luz do céu passava pela persiana entreaberta. Ouvi meus pais conversando no andar de baixo, minha visão ainda estava embaçada e eu me levantei quase que em câmera lenta.

— Edu, o almoço tá quase pronto. Hoje a louça é sua. – Gritou minha mãe do andar debaixo, eu ainda nem tinha escovado meus dentes. Olhei pela janela e o sol brilhava no máximo, quase fiquei cego no meio segunda que olhei pra fora.
— Já vou mãe – falei, porém não tão alto para que ela pudesse escutar.

Tomei meu banho, o ferimento do dia anterior realmente não era tão grande, fiquei com dó de desfazer o curativo delicado, mas foi necessário.

— Hoje tem frango assado – disse meu pai enquanto lia o jornal de domingo. – Olha só, perderam outra vez – disse meu pai se referindo a algum time de futebol do qual eu não me interessava.

Sentei a mesa, uma música do Zézé di Camargo e Luciano tocava no rádio, fiz uma careta e um gesto de vômito e meu pai lançou aquele olhar que dizia "Comporte-se". Minha mãe cantarolava enquanto colocava a forma com o frango na mesa.

É o amor, que mexe com a minha cabeça e me deixa assim...
— Meu deus – sussurrei baixinho. Meu pai me deu um chute de leve por baixo da mesa, segurei a risada.
— Então Eduardo – disse meu pai. – Eu contei pra sua mãe aquilo que tu tinha me falado, sobre cursar faculdade. Ela ficou muito feliz.
— É pai, eu disse que queria cursar uma faculdade pra ter um emprego como saída de emergência. Não me vejo preso em um lugar só tendo que fazer as mesmas coisas todos os dias – eu disse, meu pai riu com educação.

— Pensa em fazer o que, então? – Perguntou.
— Ainda não sei.
— Então é bom começar a pensar – disse meu pai. – Você já tem dezesseis e a faculdade está logo ai. Meu pai sempre me disse pra fazer faculdade e me formar em qualquer coisa que fosse, o importante era ter um diploma, mas eu não fiz. Aliás, ele ainda era bem jovem quando lutou na guerra – ele riu. – Ei, amor, sabia que meu pai só sobreviveu a guerra porque recebeu um alerta pelo rádio de um garoto?
— Que legal meu amor – disse minha mãe em piloto automático, mostrando tanto interesse nas histórias de guerra do meu avô quanto tinha em física quântica.

Augusto Caravela, meu pai, não teve muita sorte na vida. Começou a trabalhar como pedreiro muito cedo, nunca chegou a conhecer sua mãe. Meu avô, Francisco Caravela foi enviado para a Itália durante a segunda guerra mundial, e embora meu pai não gostasse de falar sobre isso, meu avô teve muitas sequelas por causa disso.

— Claro pai, não se preocupe com isso.
— Imagina nosso filho médico – falou Aída, minha mãe. – Que orgulho.
— Que orgulho – repeti sem vontade.

Depois do almoço lavei a louça como minha mãe havia pedido. Enquanto passava a esponja em movimentos circulares nos pratos a única coisa que assombrava minha mente era o futuro. Eu não sabia o que queria ser ou fazer, não sabia o que me agradava, eu tinha dezesseis anos e visão nenhuma do mundo.

— Edu? – Perguntou minha mãe. – Tu tá tão quieto hoje, aconteceu alguma coisa?
— Não, eu só ainda não sei o que eu quero ser no futuro, sabe?
— O maior erro das pessoas é desperdiçar o presente pensando no futuro. Não se preocupe, sua inspiração vai chegar. Algo vai tocar seu coração e se você decidir que ser médico não é pra você, eu e seu pai estaremos aqui para te apoiar no que for preciso.

Era ótimo ouvir aquelas palavras da minha mãe, logo ela que pensei que me criticaria e diria que deveria escolher algo que pagasse bem. O que eu sempre pensei foi que, se eu trabalhasse com algo de que não gostasse, estaria me alugando e vendendo a minha vida. Certa vez li em algum lugar que passamos dois terços da nossa vida trabalhando, o que eu menos queria era passar mais da metade da vida preso em um trabalho sem graça, odiando meu patrão e vendo minha vida passar pela janela.

— Ah, filho – disse minha mãe. – Chegou uma carta pra você hoje cedo.
— Uma carta? – Perguntei.
— Está com seu nome completo. – Ela deixou a carta sobre a mesa.

Me aproximei da mesa secando minhas mãos em um velho pano de louças com um bordado do papai noel que minha avó tinha feito dois anos antes.

"Eduardo Caravela Duarte"

Estava selado com um carimbo de cera vermelho, lembrou-me algum filme que não consegui lembrar o título, abri com cuidado para que não rasgasse. Havia um papel branco e dobrado na parte de dentro.

"De: Enfermeira Cuidadosa, Para: Aventureiro Impulsivo"

Entendi no mesmo momento que se tratava de uma carta de Valentina. Sorri sozinho, não entendi a necessidade de uma carta já que ela morava a poucos quarteirões da minha casa, mas confesso que fiquei surpreso e feliz. Desdobrei o papel.

"Estou preocupada, mande notícias sobre você e seus ferimentos. Espero que não tenha infeccionado, limpe direitinho como eu faria. Já que estou escrevendo, me diga, como está sendo seu dia? O meu vai bem, apesar do meu pai estar um pouco triste hoje. Enfim, aguardo sua resposta. Com carinho: Enfermeira Cuidadosa."

Ela havia me escrito uma carta como se eu fosse um velho amigo e não alguém que ela tinha conhecido no dia anterior, mas de todo modo aquilo era incrível.

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