Três anos antes dela
1987
Eu tinha treze anos e nenhum pelo no corpo quando ganhei aquela bicicleta. Não era a coisa mais apropriada e muito menos combinava comigo, mas teve um papel muito importante na minha vida que ainda carrego comigo a todo lugar que eu vá.
— O que achou? – Perguntou minha mãe. Encarei aquela bicicleta rosa com uma cestinha na frente. Eu sabia que se eu dissesse que não tinha gostado magoaria os dois.
— Vou comprar uma tinta ainda esse mês – anunciou meu pai. Os dois estavam passando por um momento financeiro instável, meu pai tinha ficado dois meses desempregado e só agora tinha arrumado um novo emprego em uma fábrica de cerveja wülerberg.
— É linda – eu disse, embora não conseguisse me imaginar andando em uma bicicleta como aquela. Imaginei meus amigos fazendo piadinhas e apontando para mim. – Mas eu acho que ficaria melhor se fosse preta, né?
Meu pai tinha comprado aquela bicicleta por poucos cruzados de um amigo que morava a dois quarteirões, sua filha, Valentina, tinha aproximadamente minha idade. Ela caiu com a bicicleta e decidiu que não gostava mais dela, seu pai resolveu vende-la.
— Augusto – chamou minha mãe de dentro de casa.
— Ai vem bomba – disse meu pai enquanto atendia o chamado, não sei se pra mim ou para si mesmo.Fiquei a sós com a minha nova bicicleta. Imaginei que mesmo que eu a pintasse e arrancasse a pequena cesta preta ainda iria parecer uma bicicleta de mulher. O quadro tinha uma inclinação do guidão até a parte debaixo do banco, os pneus tinham uma pequena faixa branca e ainda havia aquele pequeno bagageiro logo atrás.
— Não vai dar uma volta? – Minha mãe apareceu na porta.
— Agora não mãe. Tô meio enjoado. – Menti.
— Quer um remédio? — Ela fez uma cara de preocupada. – Falei pra não comer tanta besteira, Eduardo.
— Não mãe, só não tô legal mesmo.A verdade é que eu estava morrendo de vergonha para andar com aquela bicicleta pela rua. Me peguei pensando se poderia joga-la em alguma vala comum e dizer aos meus pais que alguém havia roubado. Mas não, eu nunca fiz nada disso.
Mais tarde, naquele mesmo dia depois de anoitecer acabei não me aguentando, queria dar uma volta naquela bicicleta. Sai sem fazer barulho e peguei a bicicleta encostada na garagem. Empurrei-a até rua. Sentei no seu fino banco e respirei fundo. Antes da bicicleta rosa, eu tive somente uma outra na vida em que naquele momento não cabia nem mais meu pé direito. Depois de tirar as rodinhas e ter crescido demais meu pai deu a bicicleta para alguém que eu não conhecia. Fiquei com medo de que tivesse esquecido como andar.
Coloquei o pé direito no pedal e deixei que o peso do meu corpo desse o primeiro impulso. Aquela foi provavelmente a primeira sensação de pura de liberdade que eu experimentei em minha vida. Desci a rua Santa Cruz com o vento batendo em meu rosto, tão rápido que parecia que eu estava voando. Meu coração ia do estado de completa adrenalina para o estado zen em um segundo. Aquilo era maravilhoso.
Cheguei em frente a casa de Wallace minutos depois, eu estava maravilhado. Antes mesmo de eu chama-lo ele já tinha aparecido na janela com seus enormes cabelos encaracolados e negros. Eu já até imaginava as coisas que ele diria sobre minha bicicleta.
— Por que não veio de saia pra combinar? – Perguntou ele.
— Cala a boca Wall. Vamos dar uma volta.Passeamos de bicicleta pelo bairro do porto. Wallace tinha uma bicicleta prateada que eu sempre tive inveja, mas não naquela noite. Corríamos nas ruas escuras por entre as fábricas passando por cima das poças de agua e desmanchando os espelhos naturais que eram como lembranças da chuva do dia anterior. Wallace não disse mais nada sobre minha bicicleta. Em alguns momentos eu fechava os olhos por um segundo e imaginava que estava em uma motocicleta. Apesar dos meus treze anos, eu ainda tinha uma cabeça muito inocente para minha idade. Minha mãe dizia que eu seria padre.
Eu podia dizer que a bicicleta me incomodava, mas estaria mentindo. Naquele momento enquanto andava ao lado do meu melhor amigo em uma noite estrelada esqueci que estava em uma bicicleta rosa, esqueci que era feminina, e pra falar a verdade aquilo não fazia nenhuma falta.
— Ed, espera! – disse Wallace quando eu o ultrapassei.
— Qual o problema?
— Estamos perto das docas – disse ele. O padrasto de Wallace, Afonso Rocha era guarda do porto. Era costume chamar o nosso bairro de Porto, porque o porto ficava no bairro, mas o nome verdadeiro era Zona Portuária, na cidade de Pelotas.
— Certo, vamos pra casa – disse eu. Wallace nunca me contava porque os dois não se davam bem, o fato é que seu padrasto o odiava. Nos dias em que ele não ia para escola eu desconfiava que era porque tinha apanhado do padrasto e não queria que ninguém soubesse.— Está tarde de qualquer jeito – respondeu ele, concordei com a cabeça.
Voltamos pelo mesmo caminho que fizemos, o vento estava mais fraco, mas a sensação ainda era ótima, me peguei pensando que eu não queria ir pra casa.
— Até amanhã, Ed! – disse Wallace. Me despedi acenando a mão e pedalei até em casa.
Desci da bicicleta alguns metros antes de chegar no meu portão e segui empurrando-a em silêncio. O único som era da roda girando, eu tinha um bobo sorriso no rosto e uma gota de suor escorria pela minha testa. Quando estava atravessando o pequeno portão com a bicicleta nas mãos notei meu pai sentado na varanda, fumava um cigarro e me encarava com os olhos semicerrados, mas não disse nada. Deixei a bicicleta na garagem, ao lado do chevette 1977 vermelho de meu pai.
— Pensei que tu não tivesse gostado – disse ele quando saí da garagem.
— Eu disse que gostei, pai.
— Mas eu te conheço – ele sorriu. – Fiz metade de ti.
— Tá bom, eu não gostei no começo – admiti. – Ela é de menina – ele riu.
— Eu sei – ele usava uma calça jeans clara e meias pretas, estava sentado na varanda com as pernas esticadas. Tinha o cabelo preto e rugas de preocupação. — Eu sinto muito que eu não possa te dar uma bicicleta igual a dos seus amigos agora, filho.
— Mas eu sai pra andar com ela, e sabe, eu andei e esqueci que era de menina. Foi tão legal que isso não chegou importar. Eu me senti tão... livre.
— Filho, você tem que aprender uma coisa na vida – disse ele. – Não importa a aparência das coisas ou pessoas, a única coisa que importa é como elas fazem você se sentir – ele tinha colocado o dedo indicador no meu peito. — Nunca tenha vergonha de algo que te faz bem.Naquele momento aprendi uma das mais valiosas lições da minha vida, não tive mais vergonha de andar na minha bicicleta – nem durante o dia. Ainda era possível ouvir os murmúrios dos outros garotos da rua, mas aquilo realmente não importava pra mim, porque quando eu estava em minha bicicleta eu me sentia o garoto mais rápido e invencível do mundo todo.

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88Hz
PertualanganUma garota que foi embora, três amigos inseparáveis, uma promessa e um velho rádio. 88Hz conta a história de Eduardo Caravela, um jovem de dezessete anos que, depois que o amor de sua vida vai embora, conta com a ajuda de seus melhores amigos para...