- Você não pode mais me ignorar – digo, me sentando ao lado de Jane. Seus cabelos escondem parte de seu rosto enfiado num caderno preto, escrevendo algo em letras minúsculas... que parecem notas musicais? Coloco a mochila numa cadeira vazia e me afundo no assento, descansando da caminhada de casa até a aula. Andar é o único jeito de chegar às aulas de oito da manhã sem desejar estar em casa debaixo das cobertas. Principalmente numa segunda-feira tão fria que faz o cobertor parecer ainda mais tentador que o normal.
- Quem disse? – resmunga a garota, sem levantar a cabeça.
- Eu. Me recuso a voltar a ser invisível em seu radar. Além disso, me sinto mal pelo que aconteceu no final de semana.
- O que aconteceu no final de semana? – Jane pergunta sarcástica, saindo de sua posição de Quasimodo. – Você não pode estar se referindo àquele cheiro repugnante que ainda está impregnado em meu carro, não é?
- Talvez sim, talvez não, mas definitivamente por alguma coisa.
- Definitivamente.
- Sinto que devo fazer alguma para compensar, mesmo sem saber direito o que aconteceu – digo, fingindo emoção na voz.
- Se você desaparecer, talvez eu esqueça tudo o que aconteceu... até entrar no carro novamente. – Aí está a prova de que Jane não é uma pessoa matutina. Bocejo, tentando espantar o sono, depois de ter virado a noite jogando. #VidaLoka.
- Que tal um café? Com pão de queijo? – pergunto.
- Que tal você pagar por um lava-rápido completo?
- Não vai acontecer. – Não com minha renda mensal e não depois de ter feito um trabalho bem bom (ou não muito ruim) em seu carro.
- Então estou bem, obrigada. – Ela volta a rabiscar o caderno preto, me ignorando.
- Então tá. – Retiro um caderno da mochila e inicio a jornada em busca da caneta perdida, dentro da mochila sem fundo. Papeis soltos, lápis sem ponta, papeis de bala e chocolate são despejados na mesa, na tentativa de encontrar uma única caneta que funcione.
- O que você está fazendo? – pergunta Jane, suas sobrancelhas unidas, indignada. Uma Bic cai de um dos mil bolsos.
- Estou arrumando meu material. – Balanço a caneta recém encontrada na altura do seu rosto. – A aula vai começar... olha ali na frente, aquele é o professor. Ele já vem fazendo o trabalho dele há algumas semanas. E você? – Aponto para o homem grisalho e com barriga proeminente por baixo da camisa social listrada. Ele havia acabado de entrar na sala e, sem falar com ninguém, retira sem pressa algumas folhas e canetas de quadro de sua pasta preta, que foi feita para carregar notebooks.
- Não sente aqui, Bernardo. – O tom de Jane parece quase implorar ao se afundar na carteira ao meu lado, apoiando a nuca no encosto desconfortável. – Tem tantos outros lugares vazios lá na frente, todos estão gritando seu nome, não tá ouvindo?
- Ainda não. – Imito sua posição exageradamente. – Está muito cedo para ouvir cadeiras falando, Jane. Isso só acontece depois das duas da manhã e de pelo menos três Josés Cuervos. – O professor começa a falar sobre a atividade que havia passado na última aula e o silêncio da sala aumenta. É raro ver turmas barulhentas no primeiro horário da manhã. – Parece que alguém acordou com o pé esquerdo hoje... ou talvez nem tenha dormido já que cadeiras estão gritando.
- Só preciso ficar quieta, sem barulho, sem conversa durante as primeiras horas da manhã. É pedir demais? – sussurra, sem se mover.
- Quando se tem aulas as oito, diria que sim. – Abro o caderno e comparo minhas respostas com as que o professor anota no quadro enquanto Jane boceja sonoramente. – Você sabe que ele vai recolher a atividade, não é?
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A fórmula matemática de Bernardo e Jane
General FictionJane nunca se rendeu às convenções sociais. Por isso, seus bens mais preciosos são seu carro (restaurado por suas próprias mãos), sua guitarra (por ser mais portátil que seu piano) e um caderno preto com todas suas músicas (às vezes) inacabadas. Ber...