Jane está no palco, tocando o mesmo piano de sua sala de estar.
Estou na primeira fila, cercado por pessoas aplaudindo-a, enquanto canta e arranca do piano tantos sons, que parecem os de uma banda inteira.
De todas as pessoas, Jane sorri para mim com aquele sorriso raro e secreto, cheio de ternura.
A música termina e as pessoas ao meu lado dobram a intensidade dos aplausos num estrondo tão alto que me acordam.
Na verdade, o barulho não é apenas fruto do meu subconsciente, mas também da carreta que buzina loucamente ao a ultrapassarmos. Sinto que deveria perguntar o motivo, mas não vejo nenhum outro carro à vista, tampouco algum perigo eminente - com exceção de Jane.
Minha motorista murmura a letra da música que sai das portas do carro, dedilhando distraidamente o volante no ritmo da bateria. Mesmo baixa, sua voz soa clara, como na noite anterior. Desvio meu olhar de Jane para meus arredores e percebo que dormi o suficiente para já ter anoitecido completamente.
- Você babou - diz Jane. A luz do painel ilumina seu rosto e sorriso, acentuando a malícia em sua voz.
- Meu pescoço dói - reclamo, fazendo uma massagem sem graça no lugar. Devo ter dormido de mal jeito por um bom tempo. Jane não responde, mas continua sorrindo. Seus óculos agora descansam no topo da cabeça, mantendo a franja esvoaçante longe do rosto.
Pequenas gotas de chuva se acumulam no para-brisa, rapidamente transformando-se em gotas pesadas, cujo som ao cair sobre o vidro é mais alto que as batidas eletrônicas da música.
- Já percebeu que a maior parte das suas músicas são estrangeiras? - pergunto, usando palavras para afastar o sono. Enquanto Jane fecha as janelas do carro, estendo a mão e aperto o tubarão de pelúcia pendurado no retrovisor do carro, suas fileiras de pequenos dentes brancos parecem lilases sob a luz do pálida do painel.
Aquele predador de pelúcia me parece a metáfora perfeita para Jane.
É claro que esse pensamento nunca chegará aos seus ouvidos.
- Sim, mas não se engane - ela responde. - Língua não é barreira para música... meu preconceito se restringe a músicas que denigrem mulheres, músicas tocadas por cacos de vidro arranhando panelas e músicas de um único acorde durante três minutos. - Jane mantém a velocidade do carro constante ao subirmos um morro bastante inclinado. Gostaria de ter sua habilidade de dirigir tranquilamente debaixo desse temporal que só piora.
- Você disse que sua mãe te ensinou aquela música comprida que tocou durante o ensaio com o pessoal... essa preferência deve vir desde cedo - comento distraidamente. Apoio o cotovelo no banco de Jane e acaricio as laterais do seu rosto. Ela é tão quente e macia que só posso imaginar como deve ser em outros lugares. Inclino-me sobre ela e beijo seu ombro descoberto ao mesmo tempo em que o barulho do motor diminui. Parece que consegui distrair alguém.
- Nas palavras da minha mãe, meu avô é um inglês esnobe, naturalizado brasileiro, que não considera nada além de música lírica digno de seu tempo - explica Jane num único folego. Devemos estar a um terço da velocidade em que estávamos. Prefiro pensar que sou o motivo em vez da chuva torrencial que não nos permite enxergar um palmo à frente do carro. - Isso significa que tive uma educação fluente em bandas britânicas e qualquer coisa desonrada, segundo meu avô.
- Isso soa como uma adolescência que deu errado - digo, entre pequenos beijos em seu ombro. Sua pele se arrepia sob meus lábios, me motivando a continuar.
- Esse carro foi presente de aniversário e suborno para mãe, pouco antes... - sussurra Jane tão baixo que seu não estivesse a centímetros de seu rosto, eu não a ouviria. - Depois que tio Raul e eu terminamos a reforma, não ficou nada mal, não é mesmo?
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A fórmula matemática de Bernardo e Jane
General FictionJane nunca se rendeu às convenções sociais. Por isso, seus bens mais preciosos são seu carro (restaurado por suas próprias mãos), sua guitarra (por ser mais portátil que seu piano) e um caderno preto com todas suas músicas (às vezes) inacabadas. Ber...