- Você está chegando em casa muito tarde para alguém que normalmente curte um REM às onze horas da noite! – Meu irmão me cumprimenta com um meio abraço e um aperto no queixo. Odeio o gesto, mesmo estando feliz em ver seu sorriso largo parado no meio da minha sala, a trezentos quilômetros de onde deveria estar.
- O que está fazendo aqui, Flávio? – pergunto. Ele me solta e tranco a porta, jogando as chaves sobre a mesa.
- Senti saudades, é claro. – Apesar do seu sorriso, sua testa franzida grita "mentira!". Bruno e Igor estão sentados no sofá, jogando Mass Effect. Na verdade, Bruno joga enquanto Igor ocasionalmente levanta os olhos do celular e comenta alguma coisa.
- Não comece a estragar sua reputação de homem honesto – digo. Flávio se orgulha de ser "alguém que não mente", em suas palavras. Acredito que o que sai de sua boca é apenas uma opinião dita brutalmente. Isso me irrita porque ninguém precisa ser rude o tempo todo. Sua sobrancelha levemente unida indica mentira, ou distorção da verdade, e significa que algo enorme deve ter acontecido.
- Para que a hostilidade? Não posso mais fazer uma visita a meu irmão mais novo que, aliás, ficou fora o dia todo? – Ele se joga no sofá, encarando a tevê.
- Bernardo, você nos obrigou a aturar seu irmão até agora – diz Bruno. – Estou decepcionado.
- Já perdi a conta de quantos tiros ouvi só essa noite, faça isso parar, cara! – Flávio finge aborrecimento e pega um pacote de biscoito recheado escondido no canto do sofá. Sento a seu lado, esticando as pernas e pronto para dormir. Depois de bom banho gelado, cortesia de Jane.
- Já vi que achou meu esconderijo. – Aponto para o pacote em suas mãos.
- Você chama aquela caixa vermelha com desenho de cupcake de esconderijo? Só falta ter uma placa em néon dizendo "me coma" em letras maiúsculas.
- Agradeça a sua irmã – digo. – Foi presente de aniversário.
- Eu sabia que tinha que ter comida guardada no teu quarto, Bernardo – resmunga Igor, preso ao telefone. – Não é natural a forma como você fica despreocupado quando acabam as coisas de comer...
- Fico despreocupado porque tem uma padaria há cinquenta metros de distância. Já reparou? – pergunto, sabendo que se dependesse de Igor para sair de casa e comprar pão, morreríamos famintos. Ele faz uma careta, desconsiderando meu argumento e volta a digitar em seu celular.
- Você conhece aquele aparelho que vem revolucionando os meios de comunicação nas últimas duas décadas? – Conheço a voz de Flávio bem o suficiente para perceber o sarcasmo em sua pergunta retórica. – É chamado telefone celular. Talvez você já tenha ouvido falar.
- Dá um tempo, Flávio. – Pego o pacote de biscoitos em sua mão. – Acabou a bateria.
- E se o pai quisesse falar com você? – pergunta. Aposto que os outros garotos não perceberam as implicações da forma como disse "pai". Qualquer desculpa basta para que comece a dar indiretas de que nosso pai me prefere a ele. Talvez isso seja verdade, mas não há dúvida de que Flávio é o favorito da mãe. E Júlia é a menina dos olhos dos dois.
- O que aconteceu, Flávio? – insisto. Meu irmão não viajaria toda essa distância à toa.
- Nada – diz, dando de ombros. – Só precisava espairecer, acho.
- Precisa de trezentos quilômetros para espairecer?
- Se não gostou, vou embora agora. – Flávio ameaça a levantar, então chuto sua canela, mantendo-o no lugar. Imagino inutilmente como minha vida seria se não fosse rodeada por pessoas difíceis. E Jane, para completar.
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A fórmula matemática de Bernardo e Jane
General FictionJane nunca se rendeu às convenções sociais. Por isso, seus bens mais preciosos são seu carro (restaurado por suas próprias mãos), sua guitarra (por ser mais portátil que seu piano) e um caderno preto com todas suas músicas (às vezes) inacabadas. Ber...