Depois de longos meses de ausência, voltar a dormir em sua cama na casa dos pais é sempre algo inquietante. Tecnicamente você não mora mais ali, seu corpo sabe que aquela não é mais sua cama e, ao mesmo tempo, a sensação de estar seguro em casa é inegável - assim como achar que está retrocedendo na vida por estar de volta ao lugar em que cresceu. Não devemos sair do ninho?
Felizmente, bastou dois minutos de debate interno sobre o assunto para a cama se transformar naquilo que é de verdade: o lugar mais confortável em que já deitei, com os lençóis mais limpos e cheirosos, que chegam a estalar de tão bem engomados.
Aquela foi uma ótima noite de sono.
Agora o que tenho é uma barra de chocolate ao leite meio derretida, o banco do carona de Jane, seus dedos batendo no volante ao ritmo de uma música alta o suficiente para ser ouvida sobre o barulho do vento circulando no carro. Este está sendo um excelente dia.
- Sua irmã ronca - diz Jane, com um leve sorriso. - Seu gato ronca. E posso jurar que alguém no quarto ao lado ronca também.
- Meu pai - explico. Ele tem um dos roncos mais altos que conheço. Sorte que a mãe tem um dos sonos mais pesados, o que os faz perfeitos um para o outro. Ontem Jane dormiu no quarto de Júlia depois de termos jogado conversa fora até as duas. Pela manhã, meus pais fizeram questão de assistirmos a vídeos antigos e vermos álbuns de fotos da década passada, o que Jane achou fascinante, especialmente descobrir a criança alegre, gordinha e de voz estridente que eu era (sinceramente, a puberdade foi minha melhor amiga).
Jogamos videogames com meu pai, que ficou chateado por eu não ter trazido o que jogo que ele me deu, mas felizmente não emburrou muito, pois não pode resistir à inabilidade hilária de Jane com os controles do videogame. Ela pode ser excelente em jogos de cartas, mas sua incapacidade de acertar zumbis na cabeça é fenomenal. Até a mãe, que revira os olhos a cada hora que o pai passa na frente da tevê, consegue pontuação melhor que a de Jane.
Não preciso dizer que seu tempo total jogando foi de exatos sete minutos e quinze palavrões sob gargalhadas minhas e de Júlia, e censura da mãe. Sendo uma das piores perdedoras que conheço, Jane alegou que seu controle estava com defeito e que não confiava em nada sem fio. Tudo isso com um sorriso maroto no rosto, que me deixou extremamente grato: não fui o único a me divertir nesse final de semana.
A mãe só nos deixou ir embora depois de um delicioso almoço de domingo, decisão que nem sonhei em contestar por motivo de sobremesa. Não teve pudim, mas sim uma deliciosa torta à jato de Nutella com morangos que preparei enquanto Júlia comia metade dos ingredientes. Bom, são apenas cinco, mas ainda assim, ela ficou todo o tempo ao meu lado com uma colher em riste, raspando panelas mesmo quando eu sequer havia terminado.
Após dois pedaços de torta, despedidas e (mais!) lençóis de cama novos que a mãe me deu, Jane nos leva de volta para a casa das meninas, de onde iremos retornar à programação normal. Apesar de adorar a rotina de aulas, estudos, natação e videogames, ainda não estou pronto para abandonar o final de semana. Tento buscar em Jane algum sinal de que compartilha meu sentimento, mas tudo o que vejo é meu reflexo em seus óculos escuros ao me encarar com uma sobrancelha arqueada.
Lembro da barra de chocolate esquecida em minha mão e tento tirá-la da embalagem sem muita lambança.
- Você está mesmo decidido a acabar com meu estoque de mantimentos em caso de apocalipse? - pergunta Jane, com a boca cheia, quando divido um pedaço da barra com ela.
- Em caso de apocalipse, você vai morrer por intoxicação se depender desse seu porta-luvas - digo, limpando o resto de chocolate dos dedos. Desperdiçar qualquer doce é contra minha religião.
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A fórmula matemática de Bernardo e Jane
Fiction généraleJane nunca se rendeu às convenções sociais. Por isso, seus bens mais preciosos são seu carro (restaurado por suas próprias mãos), sua guitarra (por ser mais portátil que seu piano) e um caderno preto com todas suas músicas (às vezes) inacabadas. Ber...