Na manhã seguinte meu pescoço está em frangalhos, suportando uma cabeça que não pode estar no lugar certo. A luz ilumina todo quarto, não, sala e me impede de continuar a dormir. O ato de sentar e levantar do sofá demora mais de um minuto. Acho que cochilei no meio do caminho.
Café. Esse é meu primeiro pensamento e motivação para sair do ninho vermelho e laranja em que o sofá se transformou. Cada passo até a cozinha parece um terremoto em minha cabeça. Na bancada, os utensílios limpos para fazer café me esperam, assim como a leiteira sobre o fogão sem chama.
Quem teria coragem de começar a preparar café e parar no meio? Acendo o fogo e coloco três colheres cheias de pó no coador, tentando me mover o mínimo possível.
- Tem uma garota no nosso banheiro. – Sem virar, reconheço o sono na voz de Igor.
- Como? – indago, perdido em dor e sonolência.
- Acabou de entrar – boceja. – A garota no nosso banheiro. – Balanço a cabeça, querendo dizer que entendi essa parte, e desejo não ter me mexido. – É estranho, porque Bruno saiu ontem da festa com uma loira, mas essa aí é morena. Será que ele saiu com duas? Ou estou enxergando demais? – Igor diminui a voz, como quem fala consigo mesmo.
Festa? Que festa foi essa? Minha cabeça rodopia com imagens e lembranças da noite de ontem. A festa de Alan que eu não queria ir, mas fui por insistência de Bruno e Igor. Isso explica porque o mundo está comprimindo minha cabeça.
- A propósito, você deveria ter ficado até o final... – Antes de terminar a frase, a imagem de uma garota segurando meu chaveiro entre os dedos, me vem à mente, assim como a memória de ter limpado vômito da porta de um carro, em frente ao meu prédio. Lembro da calça jeans, das chaves no sutiã e da Magali. Lembro porque acordei no sofá.
- A garota tá comigo – digo, interrompendo-o. Igor me olha cheio de suspeita por trás dos óculos. Normalmente não trago garotas pra casa. Exceto Thaís e minhas outras três namoradas nesses dois anos. Mas essas histórias são passado. Posso contar nas mãos as noites em que Thaís dormiu aqui (não por minha culpa, mas porque tinha aversão ao apartamento e aos garotos). – Ela estuda comigo e me deu carona para casa, por motivos de álcool demais. Ou carma. Alguma coisa envolvendo carma, acho.
- Não te falei que a festa ia ser proveitosa? – Igor abre um sorriso e apontando o indicador para mim, insinuando a existência de algo a mais.
- Não foi nada disso – digo. – Ela só passou a noite aqui porque mora longe e estava cansada... nós estudamos juntos. – Coloco a água fervendo no coador e ouço sua risada desdenhosa atrás de mim, ao pegar o cereal no armário. Não tento convencê-lo do contrário, pois já o conheço tempo suficiente para saber que quando coloca algo em sua cabeça de mula, é quase impossível fazê-lo mudar de ideia.
Entendo sua reação, pois esse não é meu tipo de comportamento. Não sei onde estava com a cabeça ao convidar uma garota estranha para dormir na minha casa (sem segundas intenções) e ainda abrir mão do meu quarto. Certo que ela não é tão estranha assim e ainda me deu carona. De qualquer forma, esse não vai ser um dos tópico dos "Domingos em família" via Skype. A menos que eu queira ouvir um tremendo sermão sobre o perigo de trazer pessoas desconhecidas para casa, sobre drogas e roubos e assassinatos. Mesmo que nada disso tenha sido o caso.
A porta do banheiro range e, em segundos, Jane aparece na cozinha vestindo o mesmo de ontem, mas com cabelos molhados, cheirando a xampu de Igor. Ela acena para meu colega, que lhe cumprimenta sorrindo.
- Dormiu bem? – pergunta Igor, entre colheradas de cereal com leite, roubando minha fala. Tiro duas xícaras do armário e as coloco em cima da bancada.
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A fórmula matemática de Bernardo e Jane
Narrativa generaleJane nunca se rendeu às convenções sociais. Por isso, seus bens mais preciosos são seu carro (restaurado por suas próprias mãos), sua guitarra (por ser mais portátil que seu piano) e um caderno preto com todas suas músicas (às vezes) inacabadas. Ber...