- E os freios, Jane? Já estão por um fio novamente? – pergunta tio Raul, com um sorriso presunçoso. Ignoro sua brincadeira e pego mais um pedaço de carne que acabou de tirar da churrasqueira.
Tio Raul é incapaz de esquecer a única vez em que ignorei a luz no painel do carro e continuei rodando com ela acesa. Se o conheço bem (e eu conheço), os comentários não serão esquecidos por muitos outros anos. Ele é mecânico, obcecado por carros, irmão caçula do pai e a única família paterna que mora perto o suficiente para visitar com frequência. Meu Outro Pai, como eu costumava chamá-lo quando era menor.
Domingo sim, domingo não, ele vem aqui em casa e faz churrasco. Sem contar nos feriados. Algumas vezes tia Luísa também aparece. Nos últimos anos, ele é a única pessoa que usa essa parte da casa. Felizmente suas habilidades são excelentes e me fazem devorar outro pedaço de sua obra-prima.
Enquanto sento à mesa, me deliciando não apenas com não precisar cozinhar, mas também por ser este o melhor porco que já comi, meu pai e Raul estão em pé preparando uma nova leva de carnes. Bom, tio Raul vira a carne na grelha e meu pai observa a precisão dos seus movimentos.
Adoro esses finais de semana com fumaça, tanto pela carne (que nos manterá bem nutridos quando quisermos um lanche noturno durante a semana) quanto pelo pai ficar menos tempo no escritório, ou na estufa, e mais tempo conversando e se comportando como uma pessoa social de verdade.
Ele trabalha desde (o meu) sempre na mesma universidade em que eu estudo, assim como a mãe trabalhava. Os dois eram do mesmo departamento e tinham vários projetos em conjunto. Ela costumava dizer que isso era só desculpa para poder roubar beijos dele quando quisesse. Todas as vezes em que essa história foi contada, eu torci o nariz. Hoje não mais.
- Agora que já está com o bucho cheio, devia tocar algo para gente, hum? – sugere tio Raul, cutucando meu braço com seu pulso. – Está um fim de tarde bom demais e uma de suas musiquinhas só vai deixar tudo melhor.
Tia Raul sempre pede que eu toque nessas tardes de domingo e sempre acabo cedendo. Na verdade, não precisa pedir duas vezes. Em algumas raras ocasiões, o pai me acompanha tocando o violão. Ele não é nem um terço tão entendido de música quanto a mãe foi, mas às vezes gosta de tocar. Será que ele se sente mais próximo dela assim, como eu me sinto? Essa é mais uma das perguntas cujas respostas nunca saberemos.
O único ponto negativo de tocar para Raul é que não posso escolher a música. Ele ama todo tipo de sertanejo, desde Gonzagão até Jorge e Mateus. Aprecio a diversidade, mas existe certas coisas que gritam "não toca, Raul".
Meu pai me olha de lado, sem dar indício de que seria dia de César & Jane (ou Jane & César?), como meu tio sempre brinca... para minha agonia.
Entro em casa e pego o violão no quarto. Da janela, percebo que ele estava certo. O fim de tarde está deliciosamente agradável, com céu limpo e um vento constante que nos permite usar calças jeans sem morrer por dentro. As montanhas ao longe não parecem maiores que morros.
Volto à área externa e encontro os dois homens da família sentados lado a lado na mesa de madeira, mordiscando um espetinho. Eles são vultos quase idênticos, escurecidos pelo pôr do sol ao fundo.
Raul é dez anos mais novo que meu pai. Os dois são muito parecidos fisicamente, cabelos escuros e narizes compridos. Nós três temos quase a mesma altura, embora sejam alguns centímetros mais altos que eu. Quem conheceu a mãe sempre comenta o quanto pareço com ela, mas toda vez em que me olho no espelho, vejo apenas o reflexo distorcido e feminino desses homens.
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A fórmula matemática de Bernardo e Jane
General FictionJane nunca se rendeu às convenções sociais. Por isso, seus bens mais preciosos são seu carro (restaurado por suas próprias mãos), sua guitarra (por ser mais portátil que seu piano) e um caderno preto com todas suas músicas (às vezes) inacabadas. Ber...