Devo estar amolecendo ou algo parecido.
Bernardo ocupa o banco do carona novamente, com um sorriso convencido estampado no rosto, e não sei exatamente como reagir. Decido ignorá-lo e prestar atenção às ruas quase vazias de um sábado depois do horário comercial.
- Qual é sua política sobre comida dentro do carro? – pergunta.
- Líquidos são proibidos e qualquer coisa que esfarele também.
- Mesmo quando o carro está nesse estado? – Bernardo olha para trás, tentando provar um argumento. Lembro dos papeis e sacolas enfeitam o banco traseiro, junto com minha mochila, uma bolsa térmica média e dois casacos que usei durante a semana. Tubarão já viu muitos dias piores.
- Se acha isso um "estado", tem que ver a mala do carro – digo. – Na verdade, é melhor não. – Ele apoia as costas no banco e se ergue para tirar um embrulho branco do bolso.
- Trouxe cocada para você.
- De onde veio essa cocada? – pergunto, desconfiada.
- Da praça.
- Que lugar da praça? – continuo o interrogatório, pois existem muitas bancas que vendem cocada na praça. Só metade presta.
- Da barraca de cocada da Dona Maria. – O semáforo fica vermelho e paro o carro, encarando o guardanapo em suas mãos. A viagem dentro do bolso não fez bem ao pobre doce, que jaz quebrado em pequenos pedaços. Apesar de ter acabado de almoçar, minha boca enche d'água. Minha resistência a doces é quase nula.
- Você pode comer, com duas condições – digo, estendendo o polegar e o indicador. – Se não fizer sujeira e se sua intenção for dividir.
- Eu não vou dividir – diz Bernardo monótono, antes de se desfazer num sorriso. – Essa é para você, tenho outra guardada.
- Igual a essa? – pergunto. Ele grunhe que sim, enquanto luta para tirar o outro doce do bolso. O sinal fica verde e avanço com o carro. Ao passar a terceira marcha, estico a mão em sua direção, esperando ansiosamente pela minha sobremesa.
- O que você está fazendo? – Bernardo soa tão chocado que sou forçada a tirar os olhos da avenida e encará-lo rapidamente, sem entender. Ele empurra meu braço na direção do volante. – Dez horas e dez minutos! E o único motivo aceitável para tirar uma das mãos do volante é passar a marcha.
- Eu passei a marcha! – explico, indignada com o sermão saído direto da autoescola.
- Então volte com a mão para o volante – diz, maroto. Antes de poder pedir o doce que me foi prometido, Bernardo estende uma mão na frente da minha boca. – Abre – pede. Tento afastar meu rosto, para checar o que tem na mão, mas ele a aproxima ainda mais da minha boca. Sem espaço para reação, obedeço, mordiscando um pedaço. Pedaços compridos de coco fazem festa em minha boca e, incapaz de resistir, devoro o restante numa única bocada.
- Deixa os coitados dos meus dedos em paz, Jane! – Sua gargalhada baixa ressoa em mim antecipando algo. Alheio, Bernardo continua: – Tem mais de onde esse veio.
- É bom mesmo! – digo, com a boca cheia. Faço uma das últimas curvas do percurso, diminuindo consideravelmente a velocidade. – Acho que devemos terminar de comer isso antes de chegar lá.
- Ainda tem outro. – Ele aponta para um terceiro embrulho fechado em seu colo. Qual o tamanho dos seus bolsos?
- Achei que não fossemos dividir.
- Presente – diz. – É sempre bom chegar com alguma coisa para o anfitrião. – Sorrio da sua frase, que lembra minha um dos mantras da mãe. Reduzo ainda mais a velocidade ao ver a subida da casa de Felipe.
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A fórmula matemática de Bernardo e Jane
Ficção GeralJane nunca se rendeu às convenções sociais. Por isso, seus bens mais preciosos são seu carro (restaurado por suas próprias mãos), sua guitarra (por ser mais portátil que seu piano) e um caderno preto com todas suas músicas (às vezes) inacabadas. Ber...