Consertamos o carro. Quer dizer, Jane consertou enquanto eu aproveitei seu cérebro multitarefado para fazer perguntas que não teriam respostas (honestas) em qualquer outra situação. Ela utilizou uma espécie de cola e fita isolante em um furo no motor (ou algo lá), o que me pareceu muito MacGyver de sua parte. E aqueles homens ainda fizeram pouco caso de suas habilidades! Sem Jane estaríamos sentados no carro esperando o reboque chegar. Na verdade, nem carro teríamos!
O clima entre nós melhorou e não preciso mais me distrair com Candy Crush no celular, nem fingir cochilar quando perco a partida (afinal, quem consegue dormir quando está furioso com algo?). Os ombros de Jane estão relaxados e sua boca menos retorcida enquanto dirige com cuidado, sem tirar os olhos do painel por mais de cinco segundos.
– Por que você faz matemática? – pergunto. Talvez eu ainda consiga respostas honestas, pois Jane divide sua atenção entre a estrada e a possibilidade de um alerta surgir no painel. – Eu não te vejo dando aulas, tampouco fazendo pesquisa nessa área... na verdade, são raras as vezes em que te vejo prestar atenção mesmo às aulas.
– Matemática era a única matéria que eu não precisava estudar no ensino médio e foi um dos poucos cursos que considerei fazer com minha nota do Enem. – Faz sentido. – Além disso, minha mãe sempre insistiu que eu devia fazer uma graduação e ter um emprego fixo, que me permitisse fazer o que quero de verdade nas horas vagas.
– E como isso está funcionando para você?
– Eu trabalho com algo completamente diferente da minha graduação, não sei o nome da maior parte dos professores atuais e depois de dois anos e meio ainda não reconheço boa parte dos meus colegas, mas como ainda não repeti nenhuma disciplina... está funcionando perfeitamente, eu diria.
– Como você consegue fazer o milagre de passar nas aulas, Jane? – Sempre quis saber como alguém que dorme nas primeiras aulas e está sempre com a cabeça em outro lugar consegue cursar as mesmas matérias que eu. Certo que faço outras disciplinas optativas, mas estamos juntos em todas as obrigatórias.
– Com meu intelecto superior ao de seus colegas neandertais.
– Agora a verdade? – peço, empurrando seu ombro. Ela me fita rapidamente com um sorriso. Vejo meu reflexo, iluminado pelo sol de fim de tarde, em seus óculos grandes e de aros verde. Jane parece ter deixado todo o peso de seus ombros no acostamento em que paramos. Apesar da preocupação com o carro, seu sorriso aparece mais leve que jamais vi.
– Eu posso ou não posso ter conseguido xerox de apostilas, provas antigas e todos os exercícios resolvidos de um aluno que se formou com honras.
– Não acredito que aqueles seis-anos-de-pós-graduação-mais-concurso-público repetem provas! – digo dramaticamente, prolongando o sorriso de Jane.
– Nem todos os professores, mas ter boa parte dos exercícios resolvidos e boas anotações da matéria contribuem para minha bela média passável. – Jane diminui um pouco o volume da música e acrescenta:
– Qual a sua desculpa para fazer matemática?
– Eu amo o curso, amo pesquisa e basicamente tudo relacionado à vida acadêmica. Não me vejo fazendo qualquer outra coisa – digo. Essa é a verdade, mesmo nos dias em que meu orientador me leva à loucura ou quando projetos de pesquisa parecem se arrastar durante séculos (diferente da efemeridade da minha bolsa).
– Mas por que lá? Naquela universidade? – pergunta Jane, apoiando seu antebraço esquerdo na janela e me encarando rapidamente com curiosidade. Nesse momento a estrada aumenta, com três pistas indo e vindo. Estamos perto de casa! – Eu já vi suas notas por cima do seu ombro e posso apostar que sua nota no Enem te garantia universidades ainda melhores que aquela e mais perto de casa.
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A fórmula matemática de Bernardo e Jane
General FictionJane nunca se rendeu às convenções sociais. Por isso, seus bens mais preciosos são seu carro (restaurado por suas próprias mãos), sua guitarra (por ser mais portátil que seu piano) e um caderno preto com todas suas músicas (às vezes) inacabadas. Ber...