- Você não poderia estar pior – digo, quinze segundos após Bernardo se sentar à nossa mesa. Durante esse tempo, Bernardo fez o milagre de se apresentar a Bia sem encantar minha amiga com seu charme de sempre. Por quinze segundos, ele parece uma pessoa normal, como o resto de nós mortais. Seus cabelos estão impossivelmente mais bagunçados que o normal, sua blusa está amarrotada e tenho quase certeza de que a mancha escura na altura do seu peito é recente.
- O que houve? Perdeu a hora? Acabou a luz ontem à noite?
- Antes fosse – resmunga. – Assim não ficaria até tarde assistindo a Daredevil.
- Então essa fossa é apenas pela irresponsabilidade acadêmica no meio da semana? – pergunto, mas não tenho resposta além de um grunhido ao abaixar a cabeça entre os cotovelos apoiados sobre a mesa. Não ter reação de Bernardo é tão atípico que inconscientemente passo a mão por seus cabelos. Me dou conta da tentativa tosca de confortá-lo no momento em que encosto em seus fios escuros e macios. Para disfarçar, deslizo meus dedos até suas costas, dou dois tapinhas chochos e afasto minha mão estúpida de perto dele. Não há dúvidas de que estou amolecendo.
- Não se culpe tanto – diz Bia, sentada a nossa frente. – Todo mundo sofre de pelo menos uma ressaca pós-maratona de séries a cada semestre. – Bernardo não levanta a cabeça, mas estende o polegar, concordando com Bia, e deixa escapar algo entre um suspiro e uma meia risada. – Jane entende disso muito bem... seja solidária! – Bia acrescenta para mim, me encarando como quem espera que algo aconteça.
- Pode dormir no meu carro, se quiser – ofereço. – Já sabe as condições.
- Isso quer dizer que avançamos outro degrau em nosso relacionamento? – Bernardo levanta a cabeça com um sorriso quase completo. Para fazer esse tipo de gracinha ele encontra ânimo. Sem aviso prévio, algo em mim foge do controle e se revira contente.
- Isso é um salto para ela, Bernardo – diz Bia. – A última vez em que me deixou ficar sozinha no carro por mais de dois minutos foi quando a fila da padaria estava longa demais e ela acabou ficando presa comprando pão durante dez minutos inteiros! Seu Ipod e eu nos divertimos como nunca!
- Obrigada pelo voto de confiança, mas o melhor lugar é aqui – diz Bernardo. Ele segura minha mão direita e a coloca onde esteve há poucos instantes. Cedo ao pedido, porque hoje é um daqueles dias para Bernardo, e acaricio seu cabelo novamente.
Verdade seja dita, eu gosto da sensação entre meus dedos muito mais do que deveria... mas Bernardo também. Quase posso jurar que um gemido feliz escapou dele.
Do outro lado a mesa, Bia sorri feito louca, me perguntando sem som "o que você tem me escondido?". Ignoro-a e me perco no calor de Bernardo, apoiando meu braço em suas costas e deixando meus dedos percorrem sua nuca. Estou tão concentrada que consigo ver os pelos finos de Bernardo se arrepiarem. Será que ele se importaria se eu me abaixasse e beijasse aquele ponto exato?
Antes que outras ideias estúpidas me distraíssem, Bia pigarreia alto:
- Viu o e-mail que te mandei ontem? – pergunta. Minha atenção custosamente deixa Bernardo. – A propósito, o que aconteceu com você ontem? Seu celular estava desligado ou algo assim? Não consegui te ligar nem você recebeu minhas mensagens.
- Vi o e-mail – respondo a uma de suas perguntas. A resposta da outra seria "ontem foi para mim um daqueles dias em que a vida não merece ser vivida, então fiquei em casa, exercitando minha alma no piano, durante o horário da aula e fui forçada a ir ao trabalho, para não alarmar tia Luísa". Nada disso sai da minha boca. – Lídia e você são sempre bem-vindas à nossa humilde casa.
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A fórmula matemática de Bernardo e Jane
Ficción GeneralJane nunca se rendeu às convenções sociais. Por isso, seus bens mais preciosos são seu carro (restaurado por suas próprias mãos), sua guitarra (por ser mais portátil que seu piano) e um caderno preto com todas suas músicas (às vezes) inacabadas. Ber...