– Prazer, sou Bernardo – diz o alvo da testa franzida do meu tio, que, por sua vez, segura o capacete em uma das mãos e estende a outra para cumprimentar Bernardo.
– Raul. – Seu olhar oscila entre nós dois, tentando entender as implicações da cena. Talvez eu devesse dizer alguma coisa, mas se experiência me ensinou algo é que é melhor não interferir em certas coisas. Com um sorriso impossivelmente amplo, Bernardo retira do porta-malas a misteriosa sacola preta.
– Ouvi coisas excelentes sobre o senhor e sua habilidade culinária – diz Bernardo. Ele deveria dar aulas de como puxar-saco com a cara mais limpa e honesta do mundo. Com certeza, ele nadaria em rios de dinheiro. – Sei que não é muita coisa, mas preparei minha melhor sobremesa para hoje: pavê de sonho de valsa.
– O que? – Quase não consigo acreditar em suas palavras. Com um dia de antecedência e aulas de manhã e à tarde, Bernardo ainda conseguiu preparar uma sobremesa? Inclino-me para ver o conteúdo da sacola, subitamente interessada. – Você teve um restinho de noite disponível e arranjou tempo para preparar algo, mesmo quando falei que não precisava?
– Não foi trabalho algum, ainda mais porque costuma ser eu o responsável por fazer sobremesas de última hora lá em casa. – Ergo os óculos e levanto a tampa do pote para inspeção. Preciso admitir que meus instintos de formiga águam com a visão dos bombons despedaçados decorando o interior do pote. Nada mal. – Espero que esteja comestível e que minha presença aqui, de última hora, não seja muito incômoda.
Quando não há resposta imediata de tio Raul, reparo que estou encostando em Bernardo com toda a intimidade de minutos atrás. Me afasto, pegando o pote de suas mãos, para disfarçar. Uma onda de calor toma conta do meu rosto e me xingo mentalmente por ter tirado os óculos. Quando foi a última vez que senti vergonha e algo? Seis, sete anos atrás? A sensação de uma menininha cuja mãe a pegou experimentando sutiãs não me abandona por um longo tempo. Finalmente, algo muda em Raul e ele sorri, pegando o pote da minha mão.
– Você trouxe açúcar para o formigueiro, rapaz – diz, inspecionando o pote e soltando um grunhido satisfeito. – Melhor impressão que essa só se seu doce estiver tão bom quanto parece. Segura aqui, Jane, e vamos lá dentro dar um jeito nas carnes. – Raul me devolve o pote e bate duas vezes nas alças de sua mochila enorme (muito maior que a minha), que usa apenas quando precisa carregar compras e não quer andar de carro. Parecendo satisfeito com as introduções, ele segue para a casa, gesticulando para o acompanharmos.
De relance, vejo Bernardo e um sorriso no canto de sua boca. Será que ele está se sentindo minimamente ansioso ao seguir esse homem de jaqueta de couro, blusa xadrez e botas? Nunca paro para pensar nisso, mas Raul pode ser bem intimidante fazendo pose ao lado de sua Ducati 1098 na cor vermelha mais bonita que já vi. Para quem é apaixonado por carros, sua obsessão por motos pode ser considerada um diferencial em seu trabalho. Verdade seja dita, qualquer coisa que tiver um motor dentro tem potencial para fazer tio Raul suspirar.
– Espero que todos esses músculos aí estejam descansados – diz Raul, assim que coloca suas botas dentro de casa, virando-se para Bernardo. – Porque hoje iremos fazer a melhor limpeza que esse terreiro já viu.
~*~
Tio Raul não estava brincando. Dois minutos depois de colocar carvão na churrasqueira, e me deixar acendê-la, foi à garagem buscar enxadas, pás, facões e tesouras. Nem os varões compridos, com colhedeiras de frutas nas pontas, ficaram de fora. Alinhando todas as ferramentas no quintal de trás da casa (em que o estado está beirando ao deplorável), Raul chama meu pai num grito alto, fazendo-o sair da estufa relutantemente.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A fórmula matemática de Bernardo e Jane
General FictionJane nunca se rendeu às convenções sociais. Por isso, seus bens mais preciosos são seu carro (restaurado por suas próprias mãos), sua guitarra (por ser mais portátil que seu piano) e um caderno preto com todas suas músicas (às vezes) inacabadas. Ber...