Se achei que Jane tocasse bem o violão, foi porque ainda não tinha a visto ao piano.
Os sons pareciam fluir com tanta facilidade que tive certeza de que se sentasse em seu lugar, poderia fazer o mesmo. Ninguém sussurrou durante a meia hora em que Jane tocou as composições mais bonitas e cheias de dor que ouvi. Não precisávamos de palavras para imaginar lágrimas caindo e cenas desoladoras que poderiam acompanhar a música. Nesse tipo de interpretação, cada pessoa contribui com sua experiência e nela se perde.
Lembro de quando tive certeza de que iria morrer. Lembro do medo de não ser bom o suficiente. Lembro do medo de decepcionar meus pais. Lembro do medo dos pais se separem e de suas inúmeras brigas, discutindo a forma correta de criar os filhos. Lembro do medo de ficar sozinho outra vez. Lembro do medo de nunca ser igual a Flávio e de nunca ter amigos como os seus... ou os seus.
A música de Jane me faz querer sentar e chorar por esconder tanta covardia dentro de mim. E quando acho que estou a cinco segundos de perder o controle, a composição muda, crescente e alegre. Não, furiosa. Seus dedos acertam as teclas com toda a certeza que eu gostaria de ter em minha vida. Nada mais de ter medo da minha própria sombra. Se sei que não há nada a temer, porque tais palavras parecem não fazer sentido quando as repito a mim mesmo, no meio da noite, todo encharcado após outro pesadelo? Quero amassar a inutilidade desse sentimento esmagá-lo com a mesma vontade com que Jane toca o piano.
Toda a insubordinação em mim se confunde quando a última nota deixa o instrumento, preenchendo meus ouvidos e minha mente com sua ausência. Como pode terminar assim? Eu não estava pronto para isso e tampouco as pessoas ao meu redor, encarando Jane ansiosas e perdidas. Até o pai de Jane, que não fala muito e nem fica perto por muito tempo, apareceu na soleira da porta para escutá-la.
Raul é o primeiro a ousar destruir a magia do momento:
– Eu te dou meu primogênito se parar de perder tempo fingindo que estuda matemática e começar a fazer música da sua vida.
– Seu filho de duas ou quatro rodas? – pergunta Jane, de costas para seu público, mas fitando nosso reflexo no espelho em cima da parede junto ao piano.
– Sua escolha.
– Querido tio, deveria pensar duas vezes antes de propor um pacto ao diabo. – Pelo espelho vejo o sorriso malicioso de Jane, encarando-me sorrateiramente. Seus olhos nos meus me lembram de nossa conversa semanas atrás. – Eu posso acabar aceitando – diz, com uma gargalhada alta e planejada para soar maleficamente.
– Pelo amor de Deus, Jane. Pare com isso! – Bia se levanta do chão onde está sentada e joga a almofada nas costas de Jane, que se vira e joga de volta. César, pai da menina, sorri com afeto do gesto e diz, meio para mim, meio para si mesmo:
– Ela parece tanto com a mãe... Teresa tinha essa mesma irreverência e capacidade de nos levar às lágrimas em segundos. Tanto de tristeza quanto de alegria. – Sua voz não é mais alta que um sussurro e me pergunto como devem ser suas aulas. As garotas me contaram que esse homem, a versão mais velha e séria de Jane, dá aulas na universidade e mal pude acreditar. Vestido como um turista estrangeiro, de chinelos, camiseta e shorts (curtos) é divertido tentar imaginá-lo, com toda sua tranquilidade, explicando algo para mais de sessenta alunos.
– Pelo que conheço de Jane, só posso imaginar que sua mãe tenha sido uma pessoa extraordinária – digo. César parece perceber que tem companhia e assente, concordando. Segundo Raul, mesmo antes da mãe de Jane, seu irmão nunca chegou perto de "extrovertido" e "sociável", mas depois do acidente sua vontade de ficar ao redor de outras pessoas parece ter se reduzido a um fio de cabelo, em suas palavras. Ou seja, César é a versão masculina, menos explosiva e bem menos irritada de Jane.
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A fórmula matemática de Bernardo e Jane
General FictionJane nunca se rendeu às convenções sociais. Por isso, seus bens mais preciosos são seu carro (restaurado por suas próprias mãos), sua guitarra (por ser mais portátil que seu piano) e um caderno preto com todas suas músicas (às vezes) inacabadas. Ber...