Capítulo 31 - Bernardo

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Se achei que Jane tocasse bem o violão, foi porque ainda não tinha a visto ao piano.

Os sons pareciam fluir com tanta facilidade que tive certeza de que se sentasse em seu lugar, poderia fazer o mesmo. Ninguém sussurrou durante a meia hora em que Jane tocou as composições mais bonitas e cheias de dor que ouvi. Não precisávamos de palavras para imaginar lágrimas caindo e cenas desoladoras que poderiam acompanhar a música. Nesse tipo de interpretação, cada pessoa contribui com sua experiência e nela se perde.

Lembro de quando tive certeza de que iria morrer. Lembro do medo de não ser bom o suficiente. Lembro do medo de decepcionar meus pais. Lembro do medo dos pais se separem e de suas inúmeras brigas, discutindo a forma correta de criar os filhos. Lembro do medo de ficar sozinho outra vez. Lembro do medo de nunca ser igual a Flávio e de nunca ter amigos como os seus... ou os seus.

A música de Jane me faz querer sentar e chorar por esconder tanta covardia dentro de mim. E quando acho que estou a cinco segundos de perder o controle, a composição muda, crescente e alegre. Não, furiosa. Seus dedos acertam as teclas com toda a certeza que eu gostaria de ter em minha vida. Nada mais de ter medo da minha própria sombra. Se sei que não há nada a temer, porque tais palavras parecem não fazer sentido quando as repito a mim mesmo, no meio da noite, todo encharcado após outro pesadelo? Quero amassar a inutilidade desse sentimento esmagá-lo com a mesma vontade com que Jane toca o piano.

Toda a insubordinação em mim se confunde quando a última nota deixa o instrumento, preenchendo meus ouvidos e minha mente com sua ausência. Como pode terminar assim? Eu não estava pronto para isso e tampouco as pessoas ao meu redor, encarando Jane ansiosas e perdidas. Até o pai de Jane, que não fala muito e nem fica perto por muito tempo, apareceu na soleira da porta para escutá-la.

Raul é o primeiro a ousar destruir a magia do momento:

– Eu te dou meu primogênito se parar de perder tempo fingindo que estuda matemática e começar a fazer música da sua vida.

– Seu filho de duas ou quatro rodas? – pergunta Jane, de costas para seu público, mas fitando nosso reflexo no espelho em cima da parede junto ao piano.

– Sua escolha.

– Querido tio, deveria pensar duas vezes antes de propor um pacto ao diabo. – Pelo espelho vejo o sorriso malicioso de Jane, encarando-me sorrateiramente. Seus olhos nos meus me lembram de nossa conversa semanas atrás. – Eu posso acabar aceitando – diz, com uma gargalhada alta e planejada para soar maleficamente.

– Pelo amor de Deus, Jane. Pare com isso! – Bia se levanta do chão onde está sentada e joga a almofada nas costas de Jane, que se vira e joga de volta. César, pai da menina, sorri com afeto do gesto e diz, meio para mim, meio para si mesmo:

– Ela parece tanto com a mãe... Teresa tinha essa mesma irreverência e capacidade de nos levar às lágrimas em segundos. Tanto de tristeza quanto de alegria. – Sua voz não é mais alta que um sussurro e me pergunto como devem ser suas aulas. As garotas me contaram que esse homem, a versão mais velha e séria de Jane, dá aulas na universidade e mal pude acreditar. Vestido como um turista estrangeiro, de chinelos, camiseta e shorts (curtos) é divertido tentar imaginá-lo, com toda sua tranquilidade, explicando algo para mais de sessenta alunos.

– Pelo que conheço de Jane, só posso imaginar que sua mãe tenha sido uma pessoa extraordinária – digo. César parece perceber que tem companhia e assente, concordando. Segundo Raul, mesmo antes da mãe de Jane, seu irmão nunca chegou perto de "extrovertido" e "sociável", mas depois do acidente sua vontade de ficar ao redor de outras pessoas parece ter se reduzido a um fio de cabelo, em suas palavras. Ou seja, César é a versão masculina, menos explosiva e bem menos irritada de Jane.

A fórmula matemática de Bernardo e JaneOnde histórias criam vida. Descubra agora