Dez

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A procissão seguia em direção à igreja da Misericórdia iluminada com tochas e velas.

Ladeada por D. Constancio de um lado e D. Eugenia de outro, Leonor seguia juntamente com as outras pessoas. Ela vestia um lindo vestido de brocado branco bordado com pérolas nas mangas e no decote. D. Eugenia reagiu com espanto ao vê-la, pois um vestido tão rico assim só deveria ser usado em uma noiva. Ela respondeu que a ocasião merecia. D. Constancio entendeu a mensagem da noiva. Que ela nada faria para reavivar os sonhos de donzela destruídos por ele.

Os seus lábios não se moviam com as palavras da reza ministrada e seus pensamentos estavam longe de ser piedosos ou jubilosos como seria de se esperar durante uma procissão a celebrar o nascimento de Jesus Cristo.

Sua mente voltava à tarde daquele dia, durante a qual ela fazia companhia a D. Isabel Cubas de Proença que preparava a ceia festiva daquela noite. Entre carnes, verduras e legumes, aromas e gostos, Isabel olhou para sua antiga pupila e observou o semblante triste.

- O que tem vosmecê, Leonor? Estás tão cabisbaixa...

A jovem soltou um suspiro e respondeu.

- Saudades de meu pai e de Martim. Preocupa-me os dois a estar aí por esse sertão a fora.

- Não te incomodes... – tranquilizou-a Isabel indo de uma panela a outra. – Não é a primeira expedição de teu pai e com certeza não será a última. E ele não há de deixar nada de ruim acontecer com Martim.

Mas a expressão de tristeza não se dissipou do rosto de Leonor, Isabel percebeu. Havia ainda algo preocupando a rapariga.

- Mas não é só isso que está a preocupar vosmecê. Deixe de rapapés e me conte o que te inquietas.

Leonor permaneceu ainda de cabeça baixa alguns minutos. Era evidente que se debatia com algum assunto grave. Isabel começou a ficar preocupada. Será que Leonor havia cometido algum desatino?

- Eu não posso me casar com D. Constancio, D. Isabel! – ela revelou.

Isabel não conteve um suspiro exasperado.

- Ainda com essa? O que mais quer vosmecê, Leonor? O homem te adora. Não sabe o que faz para te ver feliz. – Isabel pegou o pingente que repousava sobre os seios de Leonor. – Olha essa joia que ele te deu. Só pode ser de algum ourives italiano. É uma peça rara. Deve ter custado uma fortuna.

Leonor olhou para a joia sobre a mão de Isabel e recordou do momento em que D. Constancio lhe dera a joia: "Para atar vosmecê a mim por toda a vida". Era como uma sentença de prisão.

- Isso não me interessa D. Isabel. Queria eu que ele fosse um simples marceneiro, ou soldado ou pastor. Que não fosse rico e poderoso. Que não detivesse o poder de destruir uma vida inocente apenas com o bater de lábios.

- O que estás a dizer? De que vida inocente diz vosmecê?

- Da minha!

A veemência empregada atraiu a atenção das criadas que estavam a preparar a ceia. Notando isso, Isabel pegou na mão de Leonor a levando até uma sala vazia.

- Senta e me dize do que fala vosmecê. Por que tua vida corre perigo de destruição?

- O surpreendi uma noite a violentar uma das índias. Confrontei o canalha dizendo que havia de deixar a casa dele e contar ao meu pai sobre seu comportamento. E ele me chantageou dizendo que haveria de enlamear minha honra.

- Por que procuras pelos em ovos, Leonor? – respondeu Isabel. – Não és tão inocente assim para pensar que um homem viúvo como D. Constancio não haveria de servir-se de alguma índia.

- Concorda com isso?! – Leonor levantou-se horrorizada.

- Não se trata de concordar, Leonor. Trata-se de resignar-se. È uma prerrogativa dos homens.

- Prerrogativa?! A devassidão, o pecado?

- E desde quando sabes sobre do que é pecado ou devassidão, Leonor?

- Eu sei o que vi naquela noite. Aceitaria isso se fosse com D. Paulo? Que ele se deitasse com uma índia?

Isabel empalideceu um pouco diante das palavras de Leonor.

- Faço por bem desconhecer esse fato, Leonor; e vosmecê deveria fazer o mesmo. Teu pai irá casar vosmecê com D. Constancio e ponto. Ajas com teimosia e será pior para vosmecê. Pergunte a D. Eugenia o que a rebeldia trouxe para ela.

Leonor tornou a sentar-se.

- O que aconteceu com D. Eugenia?

- Esse fato é desconhecido aqui no Brasil, mas foi falado por muito tempo no Alentejo, de onde eles vêm. Meu pai contou para mim para servir-me de exemplo, pois também era um pouco rebelde. Ele me disse que D. Eugenia era uma moça linda, que tinha muitos pretendentes a seus pés. Era mui amada por seus pais e sua independência era vista com complacência por eles.

- Sim, assim como eu sou.

- É. Mas o pai de D. Eugenia permitia coisas a ela que D. Bernardo não permitira a vosmecê. Como eu dizia; D. Eugenia, a despeito dos melhores pretendentes a seus pés, enamorou-se de jovem advogado de Lisboa. Um profissional competente, mas sem posses. É claro que seus pais foram contra porque o casamento de D. Eugenia já havia sido acertado com o filho do conde de Bragado.

- E ela não concordou com o casamento?

- Não. E ela fez questão de dizer isso ao conde, ao filho e aos pais em pleno acerto. Só que o filho do conde era uma pessoa horrível. Mimado, ele não aceitou que D. Eugenia não agradecesse de joelhos o fato de ter sido escolhida por ele.

- Assim como D. Constancio.

- Mas D. Constâncio não agiu como ele. Ele fez questão de dizer a toda Portugal que havia se deitado com ela. Acredito que, se foi verdade, fora contra vontade dela. Mas é claro que a mácula ficou toda com ela. O jovem advogado, quando soube do caso, suicidou-se. A vergonha fulminou sua mãe e seu pai a mandou para um convento de onde ela só saiu para vir para cá, após a morte dele.

- Pobre mulher. Ela é tão melancólica, triste. Mas desconhecia a sua vergonha. – Leonor comentou sentindo sua simpatia crescer pela futura cunhada.

- Que isso te sirva de exemplo, Leonor. Merecedoras ou não, a vergonha será sempre imputada a nós mulheres. E uma vez maculada, ela nunca mais se apaga. E agora não quero mais que toques nesse assunto comigo. – ela se levantou voltando para a cozinha.

Esse foi meio curtinho, mas vem vindo mais por aí!

As mulheres da época da colônia não tinham muitas escolhas. Quando eram seduzidas por vontade delas ou não (e ai delas se negassem) eram para sempre maculadas. Graças a Deus estamos no século vinte e um, mas a realidade não se diferem muito daquela época, não? 

Um beijo e até o próximo.

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