Vinte e nove

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Leonor estava sentada à janela de seu quarto. Por entre as frestas da treliça negra ela olhava para as pessoas que se ajuntavam para acompanhar o cortejo fúnebre.

D. Eugenia havia arrumado para ela um vestido e véus pretos. O vestido que usara no enterro de sua mãe estava pequeno para ela.

O calor a incomodava debaixo de todo aquele pano. Afinal o vestido que ela usava era mais para o clima de Portugal do que para o calor tropical do Brasil.

As lágrimas escorriam pelo seu rosto ao se lembrar da preparação do corpo de João. Ela não teve forças para arrancar a flecha do corpo do irmão, cabendo a Agoirá a difícil tarefa.

Depois, com a ajuda de Mãe Maria, ela banhou o corpinho e o vestiu com as melhores roupas, enquanto D. Constâncio providenciava o esquife em madeira.

Então, elas o levaram para a sala, que teve os moveis afastados para a colocação do estribo que suportaria o esquife. Dois castiçais foram colocados um à cada lado do corpo e, em seguida, Leonor subiu para se trocar para receber as pessoas. Mas, depois de colocar o vestido e ao se olhar no espelho, ela sentiu-se subitamente perdida. Desejou estar entre os braços protetores de Thomas. Mas até isso ela não tinha mais.

Ela sentou-se numa cadeira, olhando o seu reflexo. Espelhos eram um artigo fabulosamente caro naqueles tempos, mais uma prova do poder econômico de D. Constâncio.

Uma batida na porta a despertou de seus devaneios.

- Querida, está na hora. – era a voz de D. Eugenia.

Leonor saiu do quarto e se preparou para os olhares, murmúrios e pêsames. D. Constâncio deu a mão para ela e a ajudou nos últimos degraus. Naquele momento, Leonor sentia-se tão vazia de sentimentos que era como se ela visse a cena de fora do seu corpo.

Os dois encaminharam-se para fora da casa. Na frente iam Padre Afonso e seus auxiliares. O badalar dos sinos ecoava nos ouvidos dela. O odor pungente do incenso invadiu suas narinas e a moça sentiu-se subitamente sem forças.

D. Constâncio, solícito a amparou pela cintura, ajudando-a se erguer. Consciente do que o pai esperaria dela se estivesse ali, Leonor endireitou-se e começou a caminhar atrás do esquife do irmão que era carregado por quatro índios, um deles Agoirá.

O índio vestia roupas do homem branco, assim como Mãe Maria. Mas eles envergavam as pinturas fúnebres de suas tribos. D. Constâncio revoltara-se contra isso, mas D. Eugenia o fizera ver que Leonor haveria de aceitar a homenagem.

Ao passarem defronte à casa dos Cubas, foi a vez de D. Constâncio sentir que as forças lhe faltavam. Ficou pálido com se visse fantasmas.

Parado numa posição marcial como a ocasião pedia, estava D. Brás rodeado de um lado pelo genro e pelo filho. D. Constâncio esperava que estivessem há muitas horas no mundo dos mortos.

Enfrentando o olhar de D. Brás, D. Constâncio pegou o braço de Leonor continuando em frente.

Oculto da multidão, Thomas observava o cortejo passar. Viu Leonor de braço dado com seu odiado inimigo. Por que Thomas odiava aquele homem com todas as suas forças. Um homem capaz de chantagear uma jovem indefesa merecia todas as mortes possíveis. Foi preciso um imenso esforço para que não corresse até D. Constâncio e tirasse suas patas imundas de Leonor.

Isabel correu para o lado da amiga e segurou-lhe a mão. Ninguém estranhou o ato fora das convenções. Todo mundo sabia o quanto as duas eram próximas.

Os Cubas juntaram-se ao cortejo em direção à igreja da Misericórdia.

Como filho de fidalgo de sangue, João Guilherme seria enterrado dentro da área da igreja.

Após os ritos, as pessoas começaram a se dispersar depois de cumprimentar Leonor. Quando todos saírem da igreja, D. Constâncio a levou para fora.

Leonor olhou para o sol. Como ele poderia brilhar tanto se dentro dela tudo era sombras? Será que algum dia, poderia voltar a ser risonha e brilhante como ele?

- Vamos, D. Leonor? – D. Constâncio a olhou em expectativa.

- Sim, é claro. – a jovem se deixou levar sem esboçar reação ao toque de seu noivo. Parecia ter perdido qualquer capacidade de sentir.

***

E a noite daquele triste dia caiu. E com ela veio a apreensão dos homens da colônia.

Mulheres e crianças haviam sido levadas pelo filho de mestre Bartolomeu pela mesma trilha em que ele já havia guiado parte da população durante o ataque dos piratas.

Mas Isabel fora irredutível. Ficaria ao lado do pai e do marido. E de nada adiantou as ameaças de D. Brás. Se tivesse que morrer, ela morreria ao lado da família. Nunca se separaria deles novamente.

E Leonor, ao saber do iminente ataque, recuperou-se da apatia pela morte do irmão. Apesar da inicial recusa de D. Constâncio, ela provou ser de grande ajuda.

O ataque foi maciço e ruidoso. Os índios estavam sedentos de sangue, e alguns colonos haviam sucumbido.

As lembranças do ataque indígena que vitimara a mãe vinham na mente de Leonor e ela deu graças aos céus por João Guilherme não mais presenciar a carnificina.

Dividindo-se em atirar e recarregar as armas, Leonor nem tinha mais noção de quanto tempo durara o ataque. Em um momento, um grupo de índios conseguiu invadir a casa dos Siqueira, sem que eles percebessem.

Logo a tão cuidada sala de D. Eugenia havia se transformado numa praça de guerra. Dois dos empregados de D. Constâncio estavam mortos por flechas. Mas nenhum dos índios que invadiram a casa saíram dela vivos.

D. Eugenia, por causa da idade, estava escondida na adega. A pobre mulher rezava agoniada, tendo por companhia a índia Genoveva e Mãe Maria, tão velhas quanto ela.

Enquanto isso, as índias mais novas, entre elas Carmo, cuidavam dos feridos. Mas sem que ninguém percebesse, Carmo pegou uma das facas dos homens e sorrateiramente avançou para D. Constâncio para mata-lo pelas costas.

Agoirá viu a movimentação da índia e, antes que ela pudesse apunhalar o português, ele a deteve.

Irritada, índia ainda tentou puxar a mão; mas o aperto de Agoirá era férreo. Vencida a índia deixou a faca cair.

O barulho chamou a atenção de Leonor que olhou estupefata para os dois índios. A expressão de Carmo era, ao mesmo tempo, culpada e belicosa. A de Agoirá estava impassível como sempre. Ao olhar a faca aos pés da índia, Leonor entendeu o que se passara.

Mas haveria tempo para admoesta-la. A jovem fez um sinal para o índio leva-la para outro cômodo da casa e voltou-se para recarregar a arma em suas mãos.

- D. Constâncio, estamos ficando sem munição! – disse um dos empregados.

- Alguém mais tem pólvora? – perguntou outro empregado.

- Esperem! Esperem! – pediu D. Constâncio. – Estão escutando?

- Nada. – respondeu Leonor.

- Isso mesmo. Os gritos, as corridas. Tudo cessou.

- Acha que eles foram embora? – perguntou Leonor.

- Não. Estão se reagrupando. – avisou Agoirá. – O primeiro assalto é sempre o maior. Eles agora estão recolhendo os mortos e feridos. Sabem que usamos grande parte da munição.

- O que vosmecê quer dizer com isso bugre?

- Que o segundo assalto é sempre o mais mortal.

Leonor arrepiou-se ao ouvir as palavras do índio.


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