Dezenove

169 15 0
                                    


Na expedição de Cavendish havia um anglicano chamado Lewis Charles. Fervoroso, ele havia chamado a atenção por seus discursos inflamados contra a Rainha Elizabeth a quem chamava de bastarda filha de uma adultera. Tais discursos haviam deixado a Rainha furiosa, pois manchavam a imagem de Ana Bolena, sua mãe.

Bem, resumindo. Para escapar da forca, Lewis teve que embarcar quase como um clandestino na expedição de Cavendish. A Rainha ficou satisfeita, pois expedições daquele tipo quase que equivaliam a uma sentença de morte.

Alguns homens, quando no mar, logo se esqueciam de suas convicções religiosas. Pois sobreviver era preciso e pensar nas sagradas escrituras sobre não matar ou no ensinamento de Jesus sobre amar o seu próximo poderia custar uma bala no peito ou uma estocada de espada na barriga.

Mas Lewis era um dos poucos homens a quem essa mudança não ocorrera. Bradava aos quatros cantos do navio sobre a danação do inferno e os ensinamentos de Cristo. Sempre era visto rezando. Mas era extremamente cruel quando a frota abordava algum navio católico.

Pois bem, então ao chegar nas terras do novo mundo e ver as manifestações católicas de seus habitantes, para ele foi viver um pesadelo. E sempre que podia, destruía sem piedade as igrejas das cidades que eles atacavam.

Em Santos não foi diferente. Na primeira oportunidade, ele fez o que considerava a sua missão. Mas isso teve um preço caro.

***

Nos domingos, a população da Vila de Santos sempre se reunia para ouvir a missa. Como a igreja estava impossibilitada de receber os fiéis remanescentes, Padre Afonso passou a celebrar a missa ao ar livre mesmo. Como os primeiros cristãos, alguns diziam, felizes por ter ainda o alento de sua religião.

Essas missas, com suas rezas e cânticos, tinham a benção de Santa Catarina de Alexandria, uma das santas preferidas dos colonos, que Padre Afonso carregava como um verdadeiro tesouro.

A imagem fora retirada às pressas da igreja pelo Padre, temeroso que os piratas, em sua maioria protestantes, resolvessem destruir a imagem tão querida.

E essa demonstração da fé católica deixava Lewis Charles, ou o Bispo como era chamado entre os piratas, furioso.

- Isso não é certo, Sir Thomas! – Esbravejava ele inúmeras vezes à Cavendish. – O lugar é nosso agora, somos representantes da igreja Anglicana da Inglaterra. E esses papistas idólatras esfregando seus ídolos em nossos narizes.

Cavendish respirou fundo ao responder. Thomas, que cuidava de algumas armas de seu capitão sacudiu a cabeça, escondendo um sorriso.

- Bispo, eu já disse e repito. Não estou interessado na vida desses papistas. Só estou esperando o Dainty, Roebuck e o Black Pinnace voltarem da pilhagem das outras cidades da costa para irmos embora desse lugar. Se eles querem rezar para os seus santos de barro, que rezem. – Completou o capitão com voz entediada.

- Mas capitão, eu posso acabar com isso! Exaltar a nossa fé, esmagando esses idólatras como fizemos com a frota do reizinho deles.

- Não! – Retrucou Cavendish. – Esse lugar está mais para um barril de pólvora. Já os roubamos, já os aterrorizamos. Se tirarmos deles o que eles consideram o bem mais precioso, estaremos acendendo o estopim. E eu não estou com homens suficientes para detê-los. E essa conversa está encerrada, Bispo.

Lewis bufou, mas não teve alternativa a não ser sair da cabine. Cavendish suspirou e olhou para Thomas.

- Antes enfrentar uma horda de espanhóis do que um fanático religioso. Homens como o Bispo ainda vão levar nações inteiras a guerras terríveis. – ele comentou. Ao ver que o seu imediato não lhe deu resposta, Sir Thomas voltou aos seus afazeres.

A Terra e o Mar - o encontro de dois mundosOnde histórias criam vida. Descubra agora