Trinta e Quatro

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Alegremente, Leonor arrumava seus baús para ir embora. Uma D. Eugenia chorosa acompanhava a arrumação dela e de suas criadas.

- Ah, D. Eugenia... – a jovem largou o que fazia e ajoelhou-se junto a cadeira onde a senhora estava sentada. – Por favor, não fique triste. Ainda estarei aqui por mais alguns dias. Iremos esperar meu irmão Martim voltar de São Paulo de Piratininga. Venho visita-la todos os dias, eu prometo.

- Ah, minha criança... Mas não será mais a mesma coisa. Acostumei-me com vosmecê descendo as escadas na carreira. Cantarolando enquanto me ajudava na lida da casa. Agora reinará a solidão e o silêncio.

- Sentirei falta dos seus ensinamentos também, D. Eugenia. Quem mais seria paciente para me ensinar a bordar com tanto primor?

- Vosmecê já sabia. Só aperfeiçoou mais.

- Vou ficar esperando uma visita sua para mostrar meus progressos.

- Eu irei, minha criança. E agora, esperas só um pouquinho que eu te trarei uma coisa.

- D. Eugenia... Já me destes tantos mimos.

- Ah, mas este sempre foi para vosmecê. – disse a senhora saindo do quarto.

Leonor voltou para os seus afazeres e já o terminava quando D. Eugenia voltou. Pediu que as índias saíssem.

- Pegas, minha criança. Tenho certeza que terá mais serventia para ti do que para mim.

Leonor pegou o embrulho envolto em um rico pano vermelho e o abriu. Surpresa viu que era o punhal que Thomas lhe havia ofertado mais cedo.

- Mas, D. Eugenia. É o presente que ganhaste do moço inglês.

- Ora Leonor, achas que sou bobinha, não é? Sabia desde o começo que esse presente não era para mim. Mas a presença de meu irmão proibiu vosmecê de o pegar. Não estou certa?

Leonor olhou para D. Eugenia piscando repetidamente mostrando o seu espanto com a sagacidade da mulher.

- É. Eu... Sim. Eu o queria aceitar, mas...

- Então. Agora o presente está como sua dona correta. Aquele jovem andas enamorado de ti, não é? Podes me dizer, miúda. E vosmecê? Enamora-te dele?

Leonor ficou como um peixe fora d'agua. Abrindo e fechando a boca sem parar, procurando as respostas para as perguntas da senhora. O que ela poderia dizer à irmã de seu futuro marido?

- Isso não importa, D. Eugenia. Tenho um compromisso assumido com D. Constâncio e vou honrá-lo. - respondeu Leonor com firmeza

- Menina, ouça o que eu te digo. Eu já passei por situação semelhante de amar um e ser obrigada a me casar com outro. Fui fiel ao meu coração e paguei um preço por isso. Mas, por conhecer o amor, o verdadeiro amor, valeu a pena pagar. E eu faria tudo de novo. Eu vou lhe contar como tudo aconteceu. Eu era jovem e bonita e meus pais...

Ver como os olhos de D. Eugenia brilhavam ao contar a sua primeira vivencia no amor, descrever a alegria de ser amada e alto preço pago por insistir em viver esse amor trouxe lágrimas aos olhos de Leonor. Teria ela a mesma coragem?

- Por isso, minha criança, - retornou D. Eugenia depois de contar a sua história, - amar é uma experiência única. Se você estiver disposta a vive-la intensamente. Sem medos, sem pensar no que os outros esperam de você. É só você e ele em um mundo só de vocês. No momento em que se permitir isso, tudo fará sentido. Ou não! – a senhora deu para ela uma piscada maliciosa.

- D. Eugenia, como a senhora soube que ele era o homem por quem valeria a pena lutar?

- Quando ele me beijou pela primeira vez, sinos tocaram, as Trombetas dos anjos soaram em minha cabeça. Me senti flutuando entre as estrelas. Você já se sentiu assim?

A curiosidade da velhinha era insaciável, pensou Leonor com vontade de rir.

- Já sim, D. Eugenia. Me sinto flutuar cada vez que ele me olha.

- Então o que vosmecê está esperando, menina? Ele é forte, capaz de defende-la. E tenho certeza que ele já lhe provou isso.

- Já sim.

- Então temes o que?

- Temo por ele.

- Meu irmão, não é?

- Sim. – Leonor começou a chorar.

D. Eugenia abraçou a moça e ela entregou-se as lágrimas.

- Ah minha criança... – D. Eugenia acariciou os cabelos de Leonor enquanto a jovem chorava copiosamente. – Constâncio não era assim. Às vezes até acho que é outra pessoa. – as duas apartaram-se e Leonor enxugou o rosto com as costas da mão. - Na juventude, meu irmão era gentil e amoroso. Eu não sei o que aconteceu com ele. A selvageria dessa terra, a própria travessia desse mar bravio, eu não sei. Ele até está com a pele marcada como se fosse um bugre ou um bucaneiro.

- Como? – Leonor perguntou subitamente alerta. – Marcada? De que jeito?

- Marcada como se fosse uma pintura. Mas que não sai. Como alguns selvagens costumam fazer.

- E como é essa pintura, D. Eugenia?

- Como um pássaro. Um pássaro negro.

Pensativa, Leonor levantou-se da cadeira.

- Como um corvo...

- Isso! Como um corvo.

"El cuervo negro. ", pensou Leonor. Era a prova que ela precisava. A prova que a livraria do casamento com D. Constâncio.

Ela se inclinou em D. Eugenia e lhe beijou a face.

- D. Eugenia, a senhora salvou-me. Salvou-me! – disse Leonor saindo correndo do quarto.

A velha senhora olhou para a porta sem entender nada. Mas ela tinha a impressão que algo importante havia saído de sua boca, embora ela não soubesse exatamente o que.

Leonor desceu as escadas encontrando-se com Mãe Maria.

- Mãe Maria, vosmecê viu o senhor meu pai?

- Minina, D. Bernardo saiu dizendo que ia ver D. Brás.

Leonor andou de um lado para outro torcendo as mãos. O que seu pai teria para falar com D. Brás? Possivelmente sobre a pega dos selvagens no interior. Ou sobre os acontecimentos da colônia?

Ela queria muito estar com ele, mas pensando melhor seria bom esperá-lo. Os sentimentos que a ligavam a Thomas eram por demais visíveis e D. Bernardo não era nenhum tolo.

Sentou-se no sofázinho. Que ideias viriam na cabeça de D. Bernardo quando ele voltasse da casa de D. Brás?



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