Treze

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E, quando as primeiras luzes da aurora passaram por entre as frestas da igreja, os piratas abriram as portas para que os cativos pudessem sair, ficando somente os homens mais importantes da vila de reféns.

Murmúrios horrorizados elevaram-se na manhã morna. Até que um grito de dor e revolta ecoava quando um dos cativos reconhecia entre os corpos caídos um parente ou um amigo.

As ruínas de uma guerra unilateral ainda fumegavam. Os choros eram ouvidos quando alguém reconhecia entre os escombros a sua moradia.

Isabel, na ausência de seu pai e de seu marido, assumiu a liderança.

- Vamos reunir um grupo. Alguns homens junto com Padre Marçal irão procurar por sobreviventes e levá-los ao hospital.

Padre Marçal apressou-se em ajuntar alguns homens e cumprir as ordens de Isabel.

Leonor aproximou-se dela.

- D. Isabel, se vosmecê permitir eu vou reunir alguns panos e levar para o hospital para servir de ataduras.

- Sim, Leonor. Faça isso. - Isabel sabia que D. Constancio também lidava com tecidos.

Leonor pegou na mão de D. Eugenia e as duas encaminharam-se para a casa dos Olinto da Siqueira.

A porta da frente estava escancarada, fazendo as duas entreolharem-se. Leonor soltou a mão de D. Eugenia e correu para dentro da casa.

- João Guilherme? Mãe Maria? - ela começou a percorrer os cômodos térreos.

- João Guilherme? Mãe Maria? Onde estão vosmecês? – quando Leonor começou a subir as escadas, Mãe Maria veio da cozinha puxando João Guilherme pela mão.

O menino correu para a irmã e abraçou-se a ela.

- Leonor... Onde estava? Tive tanto medo de perder vosmecê.

- E eu tive medo por vosmecê também.

O menino ficou branco ao ver as manchas rubras no vestido da irmã.

- O que é isso? Estás ferida?

- Não te inquietes. Isso não é meu. Mas tive que ajudar alguns feridos na luta da igreja.

- Eram muitos os piratas? E eles eram muito maus? Vosmecê teve medo? - perguntou o menino curioso.

Leonor permaneceu pensativa por alguns segundos. Se eles eram maus? Talvez... Mas de um ela não tivera medo.

A voz chorosa de Mãe Maria interrompeu seus pensamentos.

- O que é isso, minino? Deixe sua irmã quieta. Não basta o que minha minina passou? Vem minina Leonor, vou cuidar de vosmecê.

- Não, Mãe Maria. - Leonor bateu afetuosamente na mão da índia. - Cuide de D. Eugenia. A pobre está que não se aguenta. Prepare um banho para ela e a coloque para descansar. Eu ainda tenho algumas coisas a fazer. D. Isabel pediu a ajuda de todos para os feridos.

A índia Carmo aproximara-se timidamente do grupo enquanto Genoveva e Mãe Maria levavam uma quase desfalecida D. Eugenia para o quarto distribuindo ordens aos outros índios.

- Carmo... – Leonor viu a jovem índia parada na porta como se não soubesse o que fazer. – Que bom que estás bem. Preciso que me ajude com alguns tecidos. Precisamos levar ataduras e unguentos para o hospital. Venha, João Guilherme. Poderás nos ajudar também. – e sumiu para dentro da casa a procurar bons tecidos para cortar.

Quando, vindo de seu comercio, D. Constancio chegou a sua casa, Leonor mais duas índias e João Guilherme cortavam os tecidos.

- O que estás a acontecer aqui?

Leonor não interrompeu o trabalho limitando-se a responder.

- Estamos a fazer ataduras para levar ao hospital.

- E pensas que sairá desta casa? Onde está minha irmã?

Leonor ergueu a cabeça.

- Vossa irmã está descansando. Ela já não tem idade para passar por provações como a dessa noite.

- E quem está a comandar a casa? Quero banhar-me e comer.

- As criadas já deixaram comida pronta. E só servir-se. E eu não penso em sair. Eu vou levar o que D. Isabel de Proença precisa.

- Não vais sair! - D. Constancio chutou um dos tamboretes onde uma das índias estava sentada. A pobre caiu no chão. Leonor foi até ela e a ajudou a se levantar.

- Carmo, pegue esses e continue com os cortes. Leve João Guilherme com vosmecê.

- Mas eu não quero ir... - choramingou João Guilherme.

- Vosmecê vai sim com elas.

Ela permaneceu em silencio enquanto as índias e o menino saiam da sala.

- Bom... - ele esfregou as mãos com satisfação. Nada como um ataque direto para amedrontar uma mulher. - Vou levar em consideração teu ato tresloucado na igreja como resultado de forte nervoso. Mas agora obedeces a mim.

- Nunca! Não tive ato tresloucado nenhum. Antes ele fora baseado na coragem que eu recebi de meu pai. E se fora tresloucado como vosmecê o considera, antes ele do que vossa covardia.

- Me ofendes? Vosmecê se esquece do que posso fazer?

- Não. Não me esqueci de vossa vil ameaça, meu noivo. Caso-me com vosmecê, mas não terás o meu respeito. Dizes que és importante, mas donde está a tua coragem?

D. Constancio aproximou-se perigosamente de Leonor. Mas ela não teve medo.

- Oito homens estão naquela igreja por que não tiveram medo de expor o peito frente à espada do inimigo. E vosmecê? O que fez? Escondeu-se atrás das saias minha e de vossa irmã!

A vista de D. Constancio tornou-se vermelha ao ouvir Leonor chamar-lhe a atenção. Esbofeteou-a com vontade assassina. A jovem virou-se para trás caindo de encontro a uma mesa. Sentiu como se seu rosto tivesse-lhe soltado da cabeça, tal era a dor que sentia.

Uma sombra entrou na sala e ele sentiu o ar lhe faltar.

- Agoirá, não! - Leonor pediu ainda no chão. A pena para um índio que matasse um branco era a morte. - Solte-o, não vale a pena.

O índio soltou D. Constancio que ficou a tossir e arfar.

Ela levantou-se e olhou bem no fundo dos olhos dele.

- Tens coragem para bater-me ou achincalhar vossa irmã, como muitas vezes eu vi. Mas não é homem de encarar outro homem. Tenha fé em minhas palavras: Serei tua esposa, mas hei de te transformar a vida num inferno.

Dito isso ela saiu da sala, com Agoirá logo atrás. D. Constancio foi até uma mesa e entornou uma dose de cachaça num copo que bebeu de um gole só. Quem diria que a deusa haveria de se tornar uma harpia. Bem, ele poderia aguentar a desfaçatez dela até o casamento. Depois disso... Quem disse que um raio não caía duas vezes no mesmo lugar?


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