Luto

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O dia das mães passou. Não que isso fizesse alguma diferença para mim, eu não comprava algo para a minha mãe há muito tempo. Minhas lágrimas secaram (pelo menos parte delas). Danubia parou de aparecer. Achei até que tinha perdido o emprego. Provavelmente ia repetir de ano. Eu não queria sair. O torpor ainda estava regendo meus dias. No quarto escuro, eu encarava a janela, mas a verdade é que eu não estava prestando atenção em nada em particular. De repente uma coisa aconteceu e não sei como, nem porque, mas existem coisas inexplicáveis nessa vida. Eu não ouvi nenhum som de vozes, mesmo assim me espantei. Ele estava no meu jardim, dizendo alguma coisa para minha mãe. Aquilo me fez sorrir um pouco. Ele estava tentando me ver? 

Voltei para a cama e puxei as cobertas até minha cabeça. Realmente eu não queria falar com ninguém

"Bom dia" ouvi uma voz grave encher meu quarto ao abrir a porta

Não quis responder. Eu nem sabia o que ele estava fazendo ali. Minha mãe certamente tinha deixado ele subir. Merda!

A cama abaixou um pouco quando ele se sentou.

"Eu disse bom dia" ele puxou minhas cobertas

"Eu não quero falar com você" resmunguei

"Mas eu quero falar com você" ele me sacudiu quando tentei recuperar as cobertas "Eu não enfrentei a sua querida mamãe para não conseguir nada" ele continuou me balançando

Eu me sentei de repente

"E o que você quer? Que eu agradeça por provavelmente ter me causado um problema enorme? Que eu bata palmas pra você por ter vindo aqui depois de me tratar paranoicamente quando estava alto de cocaína no mês passado e me encher de drogas depois do enterro da pessoa mais importante da minha vida? Pois eu tenho uma novidade! Meu pai morreu e eu quero que o mundo vá se foder!" Minha voz falhou no final, eu já estava pela centésima vez no dia, chorando

"Eu só queria ajudar" era a primeira vez que eu o via tao passional.

"Ajudar como Carlos? Você não consegue nem se ajudar" bufei

"Achei que estivesse procurando por um ombro amigo" ele sorriu unindo as mãos

"Eu não saio de casa há muito tempo, não estou procurando nada!"

"Eu também fiquei assim" ele começou olhando para o chão "Estava completamente ferrado. Minha namorada morreu em um acidente de carro na estrada para o Rio de Janeiro" ele sorriu "Ela era tão bonita. Uma escultura de impor respeito. Tinha um vicio em me deixar louco, me alucinava, me azucrinava, mas tinha uma cara de santa que eu pirava. Mas ela foi embora e eu fiquei aqui."

"E se envolveu com esse monte de porcarias. Sinto muito" observei

"Na verdade, eu passei a consumir muito mais depois disso. Pelo menos eu tive meu alivio. Não dói como doía. Na verdade, tudo passou. Eu estou muito bem agora, você pode experimentar" ele me fitou como se me desse a solução do século

"O meu PAI morreu por causa dessa porcaria! Que tipo de pessoa eu seria se aceitasse me afundar em narcóticos só pra mascarar uma dor que um dia vai diminuir? Você está louco?" Eu perguntei franzindo um pouco a boca e com uma raiva visceral na voz

"Não estou louco. E a dor não vai diminuir Anne, ela vai consumir você e você vai tentar desaparecer com ela. Por um tempo dá certo, mas na verdade, ela só está esperando um deslize da sua parte para voltar com força total." Os olhos dele eram intensos

Ponderei suas palavras. Eu nunca tinha perdido ninguém, então não sabia dizer se aquilo era verdade. Mas Carlos parecia ter razão. A cada dia que passava, o rombo no meu peito parecia ficar maior

"Eu não posso... eu..." Não consegui terminar a frase. Minha cabeça estava confusa e meus olhos marejados. Ele me abraçou por um longo momento e se afastou

"Eu não sinto mais nada ruim, achei que você não ia conseguir suportar uma dor dessas, eu não consegui" seus olhos verdes me olhavam com tanta intensidade que pensei ter algo errado, sua voz era um murmúrio

"O que houve?"

"Você me lembra ela" ele disse um pouco aborrecido

Meus olhos saltaram. Eu parecia com uma pessoa cheia de tatuagens e piercings e etc? Que loucura!

"Você sente muito a falta dela, não é?" Suspirei e ele acenou que sim

"Sinto muita falta de muita coisa Anne. Minha mãe é uma delas" ele suspirou pesado

"Mas imagino que sua namorada era tatuada e tinha muitos piercings e falava gírias estranhas, como "Júlia'" eu fiz aspas com a mão tentando conduzir o assunto por outro caminho. Meu coração também se partia ao ver que Carlos assim como eu já tinha passado por coisas mais que suficientes na vida.

"Algumas pessoas chamam a cocaína por esse nome" ele deu uma risadinha

"Isso é no minimo estranho" eu revirei os olhos "e onde está seu pai, morreu também?" eu fui grosseira sem querer, na verdade, eu sabia que o pai dele estava bem vivo "Desculpe..." Eu completei quando o semblante dele ficou um pouco tenso

"Ele viaja muito, está sempre em movimento. Não repara muito em mim, apesar de me fornecer estoque e já deixou a boate sob minha responsabilidade então eu não tenho com o que me preocupar"

Eu estranhei

"Quantos anos você tem?"

"Dezoito ora essa" ele estava sério

"Só isso? E já está se destruindo?" Eu estava pasma e falei meio sem pensar

Ele riu um pouco

"Algum problema?"

"Não quer ser alguém na vida?" Perguntei impressionada pela naturalidade dele

"A faculdade não me importa, eu gosto das colegiais com cara de broa e cabelos postiços" ele riu me levando junto

"Eu não tenho uma cara de broa, só estava dormindo e me lamentando. Você devia respeitar isso" respondi sem graça, mas um sorriso se formava em minha boca

"Mas seus cabelos são postiços" Ele se fez de desentendido e pegou uma mecha do meu cabelo. eu devia estar péssima!

Nós rimos alto quando nossos olhos se encontraram. A piada tinha surtido efeito.

"Quero que volte para a escola" ele voltou a encarar o chão "sinto sua falta" ele falou quando o silêncio se tornou incomodo

Carlos Ferraz estava dizendo aquilo para mim? Qual era a pegadinha?

"Porque?" Cochichei

"Porque você é diferente e doce e parece tão destruída quanto eu estava... além disso, Danubia só está faltando cavalgar em cima de mim nos horários vagos" ele fez uma careta

Eu ri. Será que era tão fácil rir depois da morte de um familiar ou eu já tinha passado tempo demais ali?

"Posso dar um jeito nisso" eu falei olhando nos olhos claros "como ela está?"

"Você vai ter uma surpresa quando a vir" ele não ia me dar a resposta de bandeja

"Você devia tirar esse boné, seus olhos são bonitos" falei sincera

Ele não disse nada. Se levantou, acenou e saiu.

Pelo que parecia, meu luto eterno tinha acabado de ter um fim  

Doze MesesOnde histórias criam vida. Descubra agora