As duas casas

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Dentro da casa está extremamente escuro; a lamparina é a única fonte de luz.A casa é realmente grande e luxuosa, com vários objetos de prata e ouro.Porém Sócrates percebe algo estranho nas paredes.Elas estão cheias de fotos grandes, do tamanho de telas de pintura, com variados tamanhos.

-Olhe mais de perto – diz sua companhia.

A intensidade da lamparina aumenta, e Sócrates consegue ver mais coisas.As paredes estão cheias de fotos dele jogando bola, em vários momentos de sua vida.As fotos que possuem variados tamanhos, ao mesmo tempo são grandes tijolos.Do lado de fora da casa, elas não apareciam, havendo apenas uma cor cinza em cada bloco.

-O que é isso?Por que essas fotos?

-Um sonho é construído aos poucos.Cada momento importante para este sonho se transformou em um bloco, ajudando a construir esta casa.Lembra-se desta jogada aqui?

Eu aponta para uma série de fotos que mostram a sequencia de uma jogada em que Sócrates faz uma arrancada, marcando um bonito gol.Sócrates olha e sorri, lembrando-se do momento; ele toca levemente a foto enquanto se lembra.

-Nessa parte de baixo da casa, estão os momentos iniciais do seu sonho.Tudo aquilo que fez você desejar isso, desde quando você ainda era uma criança.Seus grandes momentos nos jogos e nas peladas, seus ídolos do futebol.Agora venha, vamos subir.

Eles sobem uma bela escadaria, muito ornamentada.

-Todo sonho precisa de ações para se realizar.Um sonho por si só não se realiza sozinho, é preciso que o indivíduo tome a iniciativa e tente realiza-lo.A maioria das pessoas quando sonha ser algo, não imagina o que terá que fazer para realizar este sonho; isso porque quando sonham, geralmente ainda são crianças e adolescentes, residindo em uma fase da vida em que se conhece pouco sobre o funcionamento do mundo real.Sendo assim, o mundo das ideias pessoal passa a emular o mundo real, e os indivíduos pensam que o mundo real é exatamente como eles imaginam.Porém, a medida que vivem, a realidade vai desfazendo suas ilusões pessoais.

-Então você quer dizer que sonhar é ruim?

-Em nenhum momento eu disse isso.Sonhar é necessário, pensar para frente é necessário para um ser humano continuar tendo algum propósito em sua vida.Todavia, ele precisa ter a consciência de que qualquer objetivo grande, precisa de grande esforço e dedicação para ser realizado.Quando se é mais novo, se tem a impressão de que qualquer sonho será realizado de maneira simples, tanto quanto dar um passo a frente.Olhe essa foto aqui, lembra- se dessa peneira?

-É, eu também lembro.

-Isso é você tentando colocar em prática o seu sonho, tentando realizar ele.Mas então você descobriu que não era assim tão fácil.

-São muitos moleques na peneira.

-Muitas pessoas tentando realizar seus sonhos.

-Eu não conseguia jogar bem nos campos grandes tanto quanto eu jogava nas quadras e campos pequenos.

-Por quê?

-Não sei.Se soubesse, com certeza teria passado em umas dessas peneiras.

-Eu sei por que você não conseguia jogar bem em grandes campos.

-É mesmo?Agora você é técnico de futebol?

-Não.Mas como eu já lhe disse antes, o meu conhecimento sobre você é muito grande.

Sócrates fica olhando para Eu por alguns instantes; tenta entender como aquele indivíduo estranho pode saber tanto a respeito dele.

-Então professor, por que eu não conseguia me dar bem nos campos grandes?

-Você era um jogador de passe longo, com visão de jogo; também sabia marcar muito bem.Tinha um bom drible e era muito inteligente.Esse tipo de jogador se dá muito bem no meio-campo, no seu caso específico, como volante.

-Volante?Você é maluco?Eu era atacante!

-Atacante que diga-se de passagem, perdia muitos gols.Até porque essa não era a sua principal característica, mas como os seus ídolos eram atacantes, você queria jogar lá na frente.Acabou desperdiçando o seu talento.Lembro que você até chegou a jogar de meio-campo, mas não por muito tempo.

Sócrates fica pensativo.Ele percebe que aquilo faz sentido; então a lamparina aumenta a sua luminosidade ainda mais.

-É mesmo...nas peladas eu sempre ficava no meio- campo ou lá trás... eu lançava o tempo todo, e quando ninguém ficava lá trás, eu por vontade própria ia pra lá.

-Se você se apresentasse nas peneiras como volante, sem dúvida nenhuma teria se tornado um jogador de futebol.

Ainda pensativo, Sócrates passeia o seu olhar sobre as fotos e vê uma que lhe chama a atenção.

-Aqui eu ia ser chamado, mas rolou uma safadeza entre os caras e acabaram riscando o meu nome pra colocar o dos moleques que tinham empresário.

-Mas isso foi uma oportunidade entre outras que você teve.O errado é colocar a culpa nas estruturas de um sistema corrupto e inocentar a si mesmo de seu fracasso.

-Tá certo, já entendi.A culpa foi toda minha.

-Também não é assim.Você tem uma grande parcela de culpa, mas os seus treinadores também tem por não colocar você para jogar no lugar certo.

Sócrates cabisbaixo, respira fundo.Ele levanta o seu olhar, e o direciona para a parte incompleta da casa.A última foto, a foto mais alta da construção, mostra ele queimando a sua chuteira enquanto chora.Ele pensa o momento... lembrando do fogo queimando o seu sonho...seus olhos ameaçam ficar cheios de lágrimas, porém ele não deixa.

-Isso agora é passado.Não consegui e ponto final, bola pra frente.

-Se você quer que esse sonho não lhe traga mais sensações tristes, precisa destruir qualquer tipo de esperança em concretiza-lo.

-Esperança?Cara, meu tempo já passou, não tem mais como eu ser um jogador.

-Porém mesmo assim, você insiste em sonhar.Lá no fundo, ainda há um pequena esperança que desconsidera totalmente a realidade e acaba lhe trazendo um pouco de sofrimento.Você já superou o fato de não conseguir realizar esse sonho, mas precisa sepultar qualquer tipo de esperança para não se machucar de modo desnecessário.

-Como eu faço isso?

Eu estende a mão, e aos poucos um martelo vai aparecendo; quando o objeto se materializa, ele o segura e oferece para Sócrates.

-Destrua essa casa.


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