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As colinas cobertas pela neve derretida deixavam tudo alagado, inclusive as galochas de Dulce e de sua mãe Bárbara.
Ambas riam brincando na poça d'água e espirrando gotinhas sujas com terra na cara uma da outra.
Elas sempre faziam isso quando sobrava tempo, especialmente ao fim de cada inverno.

— Ei! Eu sou sua mãe! — Disse a mulher, passando a mão na sua blusa, que "antes da guerra" estava limpa.

— Hoje não!

Mais uma vez Dulce pulou sobre a poça e esguichou um pouco mais de água. Bárbara gargalhou ao se ver lambuzada e com os cabelos emaranhados pelo suor.
Era bom não vestir mais as roupas de frio, sempre tão sufocantes.
Ela usava apenas uma camiseta de alças finas e um jeans azul, naquele instante, e era o suficiente para aquela tarde ao lado da filha depois de tantos dias perdidos em uma viajem de negócios onde elas mal puderam passear e apreciar São Francisco.

A cidade natal da família não era bem um lugar atraente e movimentado como as capitais.

A pequena província de West-Cost ao sul da Califórnia, tinha uma população agradável e bons vizinhos, e isso bastava para eles, quando na maioria do tempo não estavam em viagens acompanhando Robert.

A mulher, por um segundo descontraído, não pôde deixar de contemplar o quão bela era sua filha Dulce.

A menina tinha os cabelos castanhos e ondulados, olhos cor de âmbar e um sorriso tão meigo que afrontava a humanidade abrupta.
Os Escobar se orgulhavam muito do que tinham conseguido fixar nela. Dulce era mesmo uma garota competente e dedicada, além de cativante e com boas notas, embora a rotina desregrada dos negócios do pai atrapalhassem um pouco os seus estudos .
Era difícil aceitar que os anos já batiam a sua porta, e que a sua garotinha estava crescendo do dia para a noite.

Para Bárbara não fazia muito tempo desde a última vez em que amamentou e ninou Dulce no colo, mas fora o olhar de mãe, ela via uma grande mulher se formar.

De longe, por cima dos ombros da menina, Bárbara observou o semblante preocupado do marido ao falar no telefone. Ele parecia apreensivo e visivelmente angustiado com o que ouvia da pessoa no outro lado da linha.

— Mãe?

A mulher baixou a vista rapidamente ao ser chamada, vendo que Dulce a encarava duvidosa.

— O que aconteceu? — Ela perguntou, acompanhando a direção onde os olhos de sua mãe antes se ocupavam — Papai está bem?

— Claro que sim, querida.

— Então porque está tão séria agora?

— Eu apenas pensava no caminho de volta, e em como ele é cansativo.

— Já tenho dezessete anos mãe, esse tipo de coisa não me convence mais.

— Tem razão... eu devia mesmo era estar te molhando, agora!

Rebateu divertida pegando-a pelos ombros e girando-a em círculos.

As risadas das duas dispersaram o momento dramático.
Ao parar, elas caminharam ziguezagueando, tontas, ainda aos risos.

Quando Robert tornou para próximo delas, Dulce o abraçou e Bárbara apenas vislumbrou a ação da filha com um sorriso fraternal.

— Devemos ir. Em pouco tempo anoitece e Dulce precisa se proteger, agora.

A forma desesperada de seu pai ao falar aquela ordem fez com que ela entrasse em estado de alarme, principalmente após sua mãe se afastar pedindo que ela esperasse dentro do carro.

Mesmo com a porta e vidros fechados, a garota se esforçou para ouvir o diálogo deles.

— O que você quer que façamos?

No momento precisamos chegar na capital, hoje mesmo, e depois vou procurar por seguranças.

As palavras deles estavam embaralhadas, sem nexo algum. Mesmo assim ela insistiu em ouvir.

Já está ficando de noite. Robert, quero saber o que realmente está acontecendo?

De repente as feições de Bárbara ficaram pesarosas e instantaneamente Dulce também ficou assim.

— Pegue — Disse a mãe, entregando a tolha de rosto para ela enquanto entrava no carro — Se enxugue, meu bem.

Mesmo que Dulce esperasse por mais repostas, os dois encerram a conversa, ficando silenciosos e obstinados a permanecer assim.

A educação que tinha a impediu de perguntar sobre o assunto que eles a pouparam, e embora isso a tenha atormentado durante maior parte do percurso, Dulce permaneceu apenas curiosa, limpando-se dos vestígios do fim de tarde.

No cair da noite, a sonolência a fez dormir no banco de trás, enlaçada pelo cinto do meio como sua mãe sempre lhe ensinava — mesmo ao dormir, afivele o seu cinto — Era drástico ver que nem um dos dois seguia aquela regra naquele momento.

Antes dela adormecer, o som da discussão baixa deles era teatral, e Dulce podia ter certeza que ainda falavam do mesmo assunto. No fundo do seu sonho a menina ouvia a voz dos dois, mas o cansaço a impediu de abrir os olhos.

Foi então que ao som de um grito alto, berrante, seguido de uma brecada, ela os reabriu e a última coisa que pôde ver foi a demonstração de medo nos olhos de Bárbara, fixos nela, antes das pancadas de sua cabeça e corpo, contra cada canto do veículo, roubarem sua consciência.

Qualquer tempo depois, tempo esse que ela jamais saberia calcular, suas pálpebras densas e endurecidas lutaram para abrir novamente, mas as imagens eram nubladas demais. Não tinha como ver quem estava ali, ao seu lado, arrancando-a do chão como se ela fosse um pedaço de restos mortais. Talvez até fosse, e no fundo aquilo não passasse de um mau sonho.

Ela confiou nisso, pelo menos até sentir a intensa dor nas suas pernas ao serem arrastadas.

A dor era autêntica demais para ser apenas um sonho.

Quando o silêncio foi encerrado, Dulce escutou e viu um líquido ser despejado sobre o carro deles, agora de cabeça para baixo, antes da assombração negra lançar sobre ele uma chama acesa.

Mesmo estando distante do local do crime, a explosão acarretou um impacto violento sobre ela, e foi aí que de vez, a menina cerrou os olhos, desfalecida.

***

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