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Você consegue me ouvir? Garota?

Eu despertei tão abruptamente que só fui domada pela dor nas costas, e pela imagem de uma mulher bem na minha frente. Confesso que demorou alguns segundos até eu conseguir olhar ao redor e compreender que o que tinha acontecido era verdade. Eu estava acomodada em uma cama, dentro de um quarto assombroso, com as paredes mofadas.

Aquilo não se parecia com um hospital. Porque não era...

— Você está se sentindo bem?

Ela tornou a perguntar, mas eu ainda permanecia em choque para responder. Não consegui assimilar o que tinha me acontecido, até relembrar de meus pais entrando no carro, minutos antes da minha memória se perder.

— M-meus pais... aonde eles estão?!

Ela se levantou da beirada da minha cama, e com um sorriso apático acendeu um cigarro e disse, sem clemência:

— Mortos

A notícia me destroçou. Eu não me importei com a forma como ela disse, não faria diferença de fosse sutil ou grosseiro, ia doer da mesma forma. Com a mesma intensidade. Com a revelação, novas imagens se formaram, agora de um acidente, me conservaram aflita.

Baixando a cabeça eu choraminguei, soluçante, me questionando sobre o que havia acontecido realmente. Não fazia sentido algum. Nós três estávamos bem, sorrindo, juntos, e agora eu estava sem nada.

— Porque estou aqui? Que lugar é esse?!

— Olha garota, eu sou muito bem paga com certeza, mas não o suficiente para tolerar dramas de uma órfã. Então, trate de levantar depressa e se vestir. Preciso trabalhar.

Trabalhar? Sobre o que aquela mulher falava a final? Mesmo com muita dor, e não era corporal, admiti meu caráter forte e a encarei.

— Onde eu estou?! — Gritei mais uma vez a pergunta.

— Quer tanto saber? — Retrucou, largando o cigarro no chão, e se livrando das cinzas com a ponta do sapato bico fino.

Ela segurou meus cabelos e me puxou para fora da cama, fraquejando minhas pernas. Ainda chorosa, desmoronei no chão, aos gritos doloridos, mas ela me apanhou de volta e me sacudiu pelos ombros. Movimentando meu corpo como a uma boneca de tecido.

— Você está no inferno.

O tapa na cara serviu para me fazer despertar do tal pesadelo, mas de uma forma em que eu o vivenciasse de verdade. E de fato, naquele exato momento, eu tinha que admitir que estava mesmo órfã, abandonada em um lugar desconhecido e prestes a preferir estar morta.

***

Já era a segunda vez naquele dia em que eu abria os olhos e me deparava com um lugar arrepiante. Minha cabeça latejou e meu corpo ainda flamejava. Estava muito escuro, demorando um pouco até que minhas pupilas dilatassem o suficiente para me deixar distinguir alguma coisa.

Talvez fosse melhor ter ficado cega. Porque ao readquirir a visão, me deparei com uma cena deplorável.

Eu não estava sozinha, existiam mais algumas outras meninas do meu lado, todas visivelmente bagunçadas e sujas. Machucadas, com marcas e cicatrizes. E pelo balanço que todas nós fazíamos, deduzi que estávamos dentro de algum veículo em movimento. Para quem não via nada, eu já estava enxergando muito bem.

Uma das garotas, a que estava bem do meu lado, virou para me tocar um pouco retraída.

— Oi — A voz dela era penosa.

Eu não a respondi. Estava tremendo de temor, e não confiava em mais ninguém naquele momento.

— Pensei que estava morta... — Continuou — Você está caída aí há muito tempo.

Por um segundo, mesmo com a pouca claridade, vi que ela também sentia pânico de tudo. Estava mais parecida comigo do que com alguém como aquela mulher que me acordou mais cedo.

Voltei a lacrimejar, encolhendo os joelhos, e olhando diretamente para ela.

— Aonde nós estamos?

A estranha ficou triste, com a vista baixa como se refletisse. O silêncio dela me fez lembrar das palavras da mulher — Está no inferno.

— Eles... eles... — a menina articulava como se pesasse — Eles são criminosos... vendem pessoas.

Eu perdi a consciência e voltei a pensar em meus pais. Eu queria eles, precisava deles. Aquilo não podia ser verdade, eu não podia estar sozinha ali. Eu não podia estar sozinha no mundo. Meu desespero era mais real do que nunca.

— Eles bateram em você? — Perguntou ela, sob o meu choro incessante — Você parece bem machucada.

Cala a boca Red! Se eles te ouvirem falando com ela é você quem vai pagar!

A voz veio do nada, a repreendendo em meio a escuridão. Logo em seguida deduzi que a única novata ali só podia ser eu. Elas sabiam bem como funcionavam as regras daquele lugar e daquelas pessoas. Mas eu não estava disposta a pensar, a única coisa que senti vontade foi de continuar chorando até morrer.

Depois de algumas horas, a porta do caminhão abriu, e três homens surgiram. A forte luz do sol dez com que todas se protegessem, e foi então que se iniciou a caça ao terror.

Eu estava bem no fundo do baú vendo cada uma delas ser arrastada para fora, como animais. Eles riam, xingavam e falavam palavras promíscuas. Quando chegou a vez de Red, eu a vi lacrimejar antes de ser puxada, e pude analisar porque a chamavam daquela forma. Ela tinha os cabelos ruivos, longos, e uma pele coberta de sardas. Devia ser bonita, se não fosse pelos maus tratos. Ela me olhou antes de sumir, e eu percebi que seria a próxima.

Lutei igual as outras, mas não fazia diferença.

O percurso nos levava para dentro de um sótão, e quando chegamos até lá, um dos homens me encarou, frenético, sem disfarçar que eu havia chamado a sua atenção de alguma maneira. Ele então se foi, e a porta do sótão trancou. Red veio para perto de mim e se sentou ao meu lado. Nós duas parecíamos visivelmente ter a mesma idade.

— Ele te olhou Dulce, isso é ruim.

Como ela sabia meu nome?!

— Como sabe meu nome?

— Todas ouvimos falar de você durante esses dias.

Desinteressada, voltei a perguntar.

— Você disse que é ruim ele me encarar, porque?

— Eu já disse para deixar essa menina em paz!

A garota que falou no carro agora tinha um rosto. Ela era morena. E estava no outro canto do cômodo. Mesmo depois de ouvir aquilo, Red deu de ombros.

— O nome dela é Maria, e não ligue, ela é a mais velha, por isso se acha a mãe de todas.

Tornei a encolher os joelhos e agarra-los, amparando a cabeça para voltar a lamentar. Eu só sabia fazer aquilo.

— A quanto tempo você está aqui? — Ousei perguntar.

— Dois anos.

Na mesma hora apertei os lábios contendo o gemido de dor que aquela resposta me causou. Eu não podia ficar ali por todo aquele tempo.

— Eu não estou aguentando nem essas horas aqui, imagine passar mais tempo... sinto muito por você.

— Horas? — Se questionou confusa — Você sabe que dia é hoje?

Enxugando as lágrimas eu me ergui e ficamos frente a frente.
Não perguntei, porque ela parecia estar prestes a dizer a resposta.

— Hoje é sexta-feira, dia 20.

Colidindo com a cabeça contra a parede, gemi baixo, e chorei até perder a voz.

Fazia mais de duas semanas que eu estava lá.

***

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