Capítulo Vinte e Oito - Ricardo Vasconcellos

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Sou ateu, não acredito em nenhuma religião, nem tampouco em Deus. O irônico dessa constatação é que me pego toda hora implorando para que ele proteja minha mulher e meus filhos. Sorrio sem vontade e dou mais uma tragada no cigarro. Deus deve estar cagando para mim, se ele realmente existe. Afinal, porque atenderia aos apelos de um cara sem fé? Espero que ele atenda as orações de dona Rosângela, no entanto. Pelo menos ela crê. 

O inferno particular de cada um é muito peculiar. Eu achava que o meu era aturar o egocentrismo dos meus pais, mas estava redonda e amargamente enganado. O que é ser vítima de progenitores relapsos comparado a ter sua mulher grávida desaparecida? A resposta é nada. Meu inferno é agora, exatamente onde estou.

A vida não pode ser uma cretina comigo. Daniela precisa voltar. Preciso me apegar em minhas próprias crenças ou vou enlouquecer. Duvidei do amor durante vinte e oito anos para perdê-lo assim, de uma hora para outra.

Eu preciso ver meus filhos nascer. Preciso pegá-los no colo e comparar o tamanho de suas mãozinhas com a minha. Preciso ter a chance de ver quais características minhas eles herdaram, e constatar que ao menos um deles tem a cor dos olhos da mãe, como eu imaginei. Preciso ter a chance de dizer à Daniela que eu aguento qualquer merda que venha a acontecer entre nós dois, desde que ela volte. Preciso dizer que a amo, e que amo as duas vidas que ela carrega dentro de si. Caralho, como eu amo...

Eu quero contar para ela como adoro seu sotaque interiorano, e como odeio quando ela se empolga e abre a boca para cantar sob a água do chuveiro. Quero que ela saiba que escuto quando ela conversa com os Serumaninhos antes de dormir, e como sinto vontade de participar, embora não tenha coragem por medo de parecer bobo demais. Quero dizer que levo o Zóiudo para o quarto de hóspedes porque ele também me faz sentir menos solitário, e me ajuda a seguir meu orgulho e ignorar meu coração idiota, fazendo com que eu reprima a vontade de me juntar a ela, na nossa cama.

Nós precisamos escolher um nome para os nossos filhos, porra!

Ela tem que estar bem. Não aceito que não esteja. A ideia é simplesmente insuportável. Minha mulher vai voltar, e quando isso acontecer, vou gritar com ela por ter me feito passar por essa tortura. Passarei um sermão por ela ter negligenciado sua própria segurança saindo do nosso apartamento quando eu pedi para não o fazer, ainda que tenha sido apenas alguns andares abaixo, e depois vou aninhá-la em meus braços para não soltá-la tão cedo. Vou inspirar o cheiro suave de seu xampu por horas, para não correr o risco de esquecer aquele aroma confortável e enlouquecedor, ao mesmo tempo.

Há policiais por todos os cantos do meu apartamento. Policiais, porra! Meu coração está batendo descompassado dentro do peito. Mais um pouco e eu sou capaz de ouvi-lo. Mais um pouco e eu vou surtar.

Não compreendo as palavras ditas a minha volta. Estou sofrendo pela primeira vez na vida um grave déficit de atenção. É como se eu estivesse submerso em minha própria angústia.

Olho através da janela. As luzes vermelhas e azuis das sirenes das duas viaturas estacionadas diante da portaria chamam atenção dos demais moradores do condomínio. Esse bando de urubus curiosos!

Vinte e quatro horas. Foi o tempo que a polícia pediu para registrar o desaparecimento de Daniela. Quando quase ameacei o bosta fantasiado de farda que me atendeu, fui contido pelo Hugo, que me alertara sobre o palhaço poder me levar em cana por desacato. Aquele bando de gorduchos encostados que só sabem se entupir de café ruim o dia inteiro, e ganhar um pouco mais de gordura abdominal, não está nem aí para a gravidade da situação. Eles estão pouco se lixando, afinal, é só mais uma ocorrência. Só mais uma pessoa dentre tantas outras que nunca mais voltaram para casa.

É segunda-feira. Daniela desapareceu em algum momento entre o sábado e domingo. Todos pararam suas vidas desde ontem, quando decidi ignorar minha orgulhosa razão e descer procurar por ela, no apartamento do Felipe.

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