2. Relíquias

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O céu estava tingido com um degradê de laranja para um rosa arroxeado no horizonte quando Mark se levantou de manhã. A cortina entreaberta deixava os primeiros raios de sol entrar no quarto, deixando tudo em tons dourados e, apesar da luminosidade, estava bastante frio. Mark se levantou, fez sua rotina de higiene diária e foi para a cozinha. Uma batida próximo à porta avisou que o jornal acabara de aterrizar na soleira.
Depois de tomar um pouco de chá, Mark saiu em direção ao trabalho, percorrendo as mesmas ruas do dia anterior, a pé, como de costume. Era sua pacata rotina, porém, nos últimos meses, ele pegava-se refletindo porquê insistia em continuar assim. Ele não havia mudado em quase nada desde a partida de Liz e estava começando a se cansar de lamentar, esperar e vivificar todos os dias as lembranças da ex-mulher. Não sabia onde nem como ela estava, se estaria bem, onde morava e - num estalo Mark pensou - se estaria com outra pessoa. Ele queria viver uma vida normal, queria companhia, queria compartilhar seus sentimentos com alguém, queria ter um verdadeiro motivo para sorrir novamente. Queria esquecer Liz.
No meio desses devaneios Mark chegou à gráfica. Mary, a mulher que trabalhava como sua secretária, já estava esperando.
- Bom dia, Mary.
- Olá Mark, bom dia.
Mary era uma senhora de uns cinquenta e poucos anos, extremamente responsável e eficiente no seu trabalho. Nunca havia cometido erros que prejudicasse a gráfica, durante os vários anos que trabalhava ali. Mark abriu a porta, entrou, pegou algumas correspondências que haviam sido colocadas por debaixo da porta e, sem as conferir, colocou todas presas à prancheta pendurada na parede. Seu dia foi mais agitado do que o normal e quando, no final da tarde, fechou as portas do trabalho, teve a ligeira sensação que aquela correria o fazia esquecer de Liz com mais facilidade. No fundo ele não queria, mas sentia que isso o fazia bem.
Depois de percorrer o caminho até em casa, Mark tomou um banho quente, vestiu roupas limpas, tomou uma xícara de chá e saiu novamente para sua caminhada. O frio do início da noite ainda estava agradável e umas poucas estrelas piscavam como vagalumes no céu azul escuro. Mark sentou-se no banco para praça é pôs-se a notar os detalhes da paisagem e das pessoas que passavam à sua frente. Um velho senhor andava apoiado em sua bengala, uma mulher de meia idade passeava com seu poodle branco e gordo, que mais parecia uma ovelha, um jovem casal passou discutindo sobre qual carro deveriam comprar, um pai andava de mãos dadas com seu filho. Mark observava tudo atentamente e mentalmente tentava descobrir a idade das pessoas que passavam ali. Nunca saberia.
Depois do que pareceu mais de uma hora, Mark sentiu os pés começarem a formigar e então se levantou e encaminhou-se vagarosamente para casa. Parou em frente ao jardim e ficou ali por alguns minutos. Não era essa a vida que queria. Queria amar alguém novamente, mas Liz habitava em seus pensamentos. O que fazer? De súbito, Mark cruzou o quintal e entrou em casa. Acendeu as luzes e começou a trocar as coisas de lugar na esperança de não ver Liz em cada cômodo. Já tarde da noite, cansado, Mark verificou os resultados: havia mudado quase tudo de lugar. Não havia fotos de Liz em lugar nenhum, embora Mark não as houvesse jogado fora e sim guardado em uma caixa na oficina nos fundos da casa. Os enfeites que pertenciam originalmente a Liz foram tirados e colocados em algumas caixas à parte e Mark pretendia levá-los para a instituição beneficente da Sra. Wilson. Ele se desfez de tudo sem se dar ao luxo de pensar muito, para não ter tempo de se arrepender.
No dia seguinte, Mark pegou as caixas, colocou-as no porta malas de seu antigo Jeep Cherokee verde escuro e saiu em direção à casa da velha Sra. Wilson. Dirigiu por uns três minutos até parar em frente à uma bonita casa amarela. Ele desceu, tirou as caixas do carro, levou-as até a porta da casa, tocou a campainha e rapidamente a porta se abriu. Uma senhora de cabelos grisalhos apareceu com um sorriso no rosto. Ela era alta, um pouco acima do peso e aparentava um vigor incomum em velhinhos da idade dela.
- Mark! Que surpresa! - exclamou ela - Venha, entre.
- Olá Sra. Wilson. Não fique chateada, não vou entrar hoje. Só vim trazer umas coisinhas para a senhora vender.
- Ora, Mark, ainda é cedo pra você ir trabalhar e estou vendo que está de carro. Venha, vamos tomar um café.
Mark sorriu. Gostava da companhia dela. Conversar com ela era como conversar com uma mãe que tinha bons ouvidos e ótimos conselhos.
- Tudo bem - disse Mark - vamos tomar um café.
Ele pegou as caixas, levou-as para dentro e colocou-as num canto da sala.
- Estou desapegando de algumas coisas, Sra. Wilson. Não tenho tempo de organizar tantos objetos pela casa - mentiu tentando soar natural.
- Obrigada, Mark. Vou levar tudo para a instituição - disse ela virando-se e indo em direção à cozinha seguida por Mark.
Tomaram café, comeram biscoitinhos assados com geléia de morango e conversaram por algum tempo.
- Mark - começou hesitante a Sra. Wilson - se me permite perguntar, você tem alguma notícia de Liz?
Ele engoliu em seco e seus sapatos lhe pareceram perdidamente interessantes.
- Oh, Mark, desculpe-me. Eu não queria...
- Eu não me importo, Sra. Wilson. - interrompeu-a Mark educadamente - Na verdade eu não tenho notícias dela desde quando ela partiu. Nunca mais falei com Liz.
Falar aquilo foi um verdadeiro desafio para ele.
- Eu... na verdade, eu trouxe aquelas coisas para a senhora porque tudo aquilo era dela. Tudo me fazia lembrar dela. Não quero isso para minha vida.
A mulher olhava para Mark com compaixão e ela notou os olhos dele marejados.
- Mark, me perdoe. Eu não queria te entristecer. Eu sinto muito.
Mark secou os olhos com os dedos e sorriu para a mulher.
- Sabe, - começou ele - já se passaram três anos. Três longos anos. Não posso esperar mais. Eu não quero esperar por ela. Minha vida parou no dia em que ela foi embora. Todo esse tempo e eu não fiz nada, só esperei. Esperei ela ligar, esperei qualquer contato e nada. Acho que ela não iria me querer novamente também.
Os olhos azuis da Sra. Wilson estavam fitos em Mark e lhe encorajava a falar.
- Eu... eu não consigo mais ficar sozinho. É deprimente ficar naquela casa vazia. Eu me sinto vazio, triste...
- Mark, acho que você não sabe mas o Larry não foi o meu primeiro marido. Eu tive um relacionamento de oito anos com outro homem. Seu nome era Gerald. Eu o conheci aos dezesseis anos e nos casamos dois anos depois.
O olhar da Sra. Wilson estava vago, como se tentasse recordar memórias muito antigas.
- Nosso casamento durou seis anos. Descobri as traições dele um ano antes de nos separamos. Acho que não fui o suficiente para ele. Sofri muito com nossa separação mas, dois anos depois eu conheci Larry e nos apaixonamos. Na verdade fiquei um pouco confusa pois eu achava que ainda amava Gerald, mas com o tempo eu percebi que ele não significava mais nada em minha vida.
- A mulher tamborilou os dedos na mesa. Duas alianças de ouro brilhavam, polidas caprichosamente, em sua mão esquerda.
- Larry passou a ser o homem dos meus sonhos. Tudo que eu precisava estava nele. Ele me deu vida nos momentos mais difíceis, riu comigo, chorou comigo, nos divertimos muito. Eu achava que era feliz com Gerald mas a verdadeira felicidade eu encontrei com Larry. Ainda sou feliz, mesmo depois de um ano de sua morte. Sinto muito a falta dele, é claro, mas não posso dizer que não vivemos tudo o que poderíamos ter vivido juntos.
Ela deu um sorriso acolhedor.
- Mark, não se culpe pelo fim do seu casamento. Não se culpe se, por um acaso, desejar substituir alguém que te abandonou. Sua felicidade é muito importante para você.
Mark assentiu e bebeu um gole do café já frio em sua xícara.
- É, eu não tenho sido feliz. Nesses três anos eu estou vivendo exatamente igual ao primeiro dia que passei sem Liz. Ainda não consegui motivação para mudar.
- Bem, acho que o fato de você estar se desfazendo de algumas coisas dela já é um bom começo - disse a Sra. Wilson sorrindo.
- Acho que terei que fazer mais - disse Mark movendo a cadeira para trás - Mas, muito obrigado, Sra. Wilson, eu realmente precisava desabafar um pouco. Há muito tempo eu não conseguia conversar assim com alguém. Agora eu preciso ir. Já está passando da hora. - disse sorrindo.
- Tudo bem Mark. Se quiser conversar novamente, você sabe onde me encontrar.
Eles se levantaram e a mulher acompanhou Mark até à porta.
- Obrigado mais uma vez, Sra. Wilson.
Ela apenas sorriu e acenou para Mark enquanto ele entrava no carro.
Mark passou o dia pensando na conversa que tivera com a velha senhora. Ela sabia como ele se sentia. Conhecia as dificuldades de viver como um abandonado sem amor. Ela havia superado as barreiras e vivera feliz ao lado de Larry.
A noite, depois do trabalho, Mark não saiu para sua repetida caminhada noturna, ao invés disso, sentou-se no sofá, ligou a TV e ficou algum tempo zapeando entre um canal e outro sem ver nenhum programa por completo. Pela primeira noite, depois de muito tempo, sentia-se bem. Não podia dizer que estava feliz, mas sentia-se confortavelmente aliviado. Depois de um demorado banho quente, Mark deitou-se, fechou os olhos e adormeceu.

Continua...

Um inverno entre nós (CONCLUÍDO)Onde histórias criam vida. Descubra agora