1 - tédio

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Eu não dormi quase nada essa noite. Mais um sonho estranho, um pesadelo de certo ângulo.

O sol, apesar dos seus esforços em reluzir no firmamento, não é páreo para as cinzentas e opacas nuvens que o abraçam, implacáveis. O frio está mais forte que as tentativas da estrela em aquecer os arredores da cidade. Ambos pálidos e sem vida, céu e terra combinam-se perfeitamente, como natureza-morta. Esse é o clima programado para hoje.

Que vontade de morrer.

Muita gente hoje em dia toma esse rumo mesmo. Ou já tomou anteriormente, afinal, as coisas parecem que se aquietaram nos últimos anos. Ou a gente se acostumou mesmo. Sempre houve suicidas desde o começo de tudo. Tudo era um motivo suficiente para o salto para a morte.

Estou voltando para casa da escola e andando por uma das avenidas da cidade, sobre a calçada que já presenciou quando tudo era diferente. Cabisbaixo, olho para as linhas divisórias do pavimento e tento me divertir em não pisar nelas. Não dá certo, por causa do crescente movimento de pessoas que de repente aparece na contramão.

Ainda posso ver a rua principal, com todas aquelas lojas fortificadas. A massa de crimes é a causa. Há muito não há vitrines muito expostas nas ruas, tampouco letreiros exuberantes. A ausência dos outdoors faz as coisas soarem antigas. Mesmo com o toque de recolher, funciona como se qualquer adereço que chamasse atenção demais fosse uma cabeça dada a prêmio.

É fim de tarde.

O ano é 2028, e vivo num dos vinte e sete refúgios da América do Sul. Na verdade o nome correto é Célula Provisória de Suporte, mas muita gente chama só de célula, para economizar. Os nomes abrigo e refúgio também são populares. Eu particularmente tenho muitos outros nomes, e nenhum deles tem algo a ver com proteção ou segurança. Um dos meus apelidos mais irônicos é Trincheira, porque é como se estivéssemos ainda em guerra; assegurados, mas ainda em perigo iminente. Isso porque no Refúgio eles constantemente nos dizem que há algo ruim fora daqui, nas zonas mortas. Há quem não acredite, mas eu sim.

Antes das células, das zonas mortas e de tudo o mais, tudo era diferente. Ainda me lembro vagamente — eu era uma criança na época — das antigas propagandas de TV, das músicas, dos celulares que meus pais nunca permitiam que eu tivesse, mas todo mundo tinha quase como se fosse parte da pele; dos brinquedos, desenhos e lugares que eu via nas telas. Ah, eu lembro com certo humor irônico que meus pais diziam sempre que o mundo era perigoso e eu devia ter bastante cuidado. Eu viajava muito, por todo o país, e ele era grande.

Tinha também o resto que meu cérebro infantil não processava. A política mundial estava instável, apenas sendo encoberta pela imprensa. Isso porquanto, apesar do advento da tecnologia e do esforço de algumas organizações em resolver os problemas, a desigualdade aumentou, sendo o motivo para várias manifestações e confrontos diretos, civis e militares. Os extremos ascenderam e transformaram a sociedade. Nesse cenário, crimes ocorriam de todos os lados e o número deles aumentava absurdamente. Nós éramos extremamente vulneráveis já naquele tempo, porém ninguém esperava mesmo o que veio a seguir. Existia algo escondido realmente. O ocidente todo estava ameaçado. A guerra, tão de repente quanto os ataques, eclodiu. Tudo aconteceu para que a humanidade realmente permanecesse ignorante aos fatos. Não se sabe quem foi o inimigo, e as poucas informações que obtemos parecem contestáveis e incompletas. Talvez o objetivo do conflito fosse mesmo dizimar a humanidade ou uma parte dela, ou mesmo levar ao exato momento em que vivemos, mas há uma realidade: tinha sido uma guerra oculta.

Até hoje não entendo como ocorreu. Não sei mesmo explicar bem sobre aquela realidade. O que eu sei eu ouvi de gente mais velha, e acredite, era ruim sim, mas eu daria tudo para viver naquilo. Na época ninguém sabia, mas a tecnologia viria a ser uma ameaça. Todos sabiam que era uma guerra suicida, que poderia ser finalizada simplesmente com um botão que armava uma ogiva, mesmo que existisse algo como um acordo a respeito do uso de armas nucleares. E aparentemente foi isso que ocorreu, apesar de que nós felizmente tivemos um tempo precioso de aquecimento antes da tragédia.

Máscara Negra - ImpactoOnde histórias criam vida. Descubra agora