47 - dissonância

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Tudo recomeça em um sonho. Ali eu sou um garoto de oito anos.

É uma memória.

Tenho vislumbres de faróis em meu rosto, ofuscando minha visão. Homens vestidos com roupas amarelas à prova de radiação me levam em uma maca por uma rampa escorregadia para baixo da terra. Sirenes sutis tocam pausadamente pela plataforma. O complexo está fortemente protegido das pessoas na zona morta, mas eu estou ali. Eu fui privilegiado, eu acho. Está chovendo, e é noite. Tenho consciência do sentimento de abandono, mas uma parte de mim continua me acalmando com palavras de conforto, dizendo que não estou só.

"Vai ficar tudo bem, Erich."

É a voz de minha mãe. Carrego ela em meu peito, assim como todas as lembranças felizes dos momentos que passei com minha família. Ainda dói. Dói muito. Tem horas que eu só quero morrer e acabar com o sofrimento, mas não tenho coragem para tal. Eu sou mesmo um covarde.

É tudo tão vívido. O luto, a solidão, a sobrevivência. O fardo é extremamente pesado, e eu sou apenas uma criança.

Eu não iria sobreviver uma semana. Eles me matariam ou eu morreria por inanição, fome e/ou desidratação. Morreria por não saber lutar.

Mas tudo mudou.

Não me debato na maca, antes fico quieto, refugiado em meu inconsciente. Choro, mas as lágrimas se confundem com a chuva salpicando sobre minha pele exposta. Espero tudo que vier com uma dormência de espírito, acolhendo meu destino e o entregando às mãos desses caras. Estou indiferente, e não há como descrever como me sinto por dentro.

As ataduras começam a incomodar meus pulsos e tornozelos, mas não mexo um músculo. Minha visão está totalmente imobilizada, fixando um ponto neutro no céu nublado daquela noite. A paisagem é deixada para trás com a velocidade.

Eles disseram que eu era importante. Por quê? Há tantos que precisam mais do que eu, mas por que justamente eu? Não é justo.

Eu não quero que me respondam, apesar das perguntas. Quero dormir e acordar como outra pessoa, necessariamente como o Erich de alguns anos atrás. Quero meus pais, quero minha casa, quero sair para comer um hambúrguer sem ter medo de ser intoxicado.

Contudo há algo em mim, uma parte ínfima, que deseja saber o que vou ter que fazer em seguida.

Finalmente a rampa acaba e adentramos em um portão subterrâneo. Quando ele se fecha, não consigo mais ouvir o som das gotas de chuva. Engulo em seco.

Um flash surge e quando percebo, estou sentado em uma cama numa sala de hospital, vestido com uma única peça de roupa. Sinto frio e aperto os braços junto ao corpo. Tem um tubo acoplado a uma veia em meu antebraço, nutrindo-me com um líquido transparente. Em minha frente há um homem velho de terno. Ele me pergunta se sei o que é radiação.

Eu assinto, quieto. Em resposta, ele se mexe na cadeira e inclina o corpo para a frente, instigado, tentando soar paternal ou pelo menos amigável.

- Você fala, Erich?

Eu assinto de novo. Lhe fito no rosto. O ambiente higienizado me deixa cansado, mortiço, mas prossigo atento nele.

O moço se ajeita na cadeira, desconfortado. Ele é careca com um cavanhaque ruivo cobrindo seu rosto. Tem uma cara meio comum, mas quando ele franze as sobrancelhas, dá um pouco de medo.

- Sabe por que você é importante, Erich?

Nego com a cabeça. Ele já entendeu que não quero falar, e eu também. Se tiver que falar, será em última instância, e será uma informação bem sucinta.

Máscara Negra - ImpactoOnde histórias criam vida. Descubra agora