paraíso: o estrangeiro

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Eu tinha oito anos quando vi meu anjo da guarda, ou o estrangeiro abandonado, como espalharam os criados pelos cantos da velha mansão, pela primeira vez. Naturalmente soube de sua existência muito antes de nosso primeiro encontro, assim que colocou os pés em nosso país, pois não era natural que meu avô retornasse para casa, depois de mais uma viagem a negócios, na companhia de jovens desabrigados, quebrados e suturados.

Todos souberam e a foto do corpo magro amparado por duas muletas estampou as manchetes mais importantes de toda a Itália. As pessoas precisavam entender o que um garoto moribundo e cheio de equimoses horrendas fazia acompanhado do Primeiro Ministro do Presidente, no desembarque do aeroporto Fiumicino*. Queriam saber os motivos contidos nas malas e no cuidado excessivo e paternal com o qual vovô o tratava.

Meu pai o odiou desde o primeiro momento e eu, como uma pequena cópia, uma amostra sua e de seu reflexo de preconceitos, também o odiei, mas por motivos diversos. Agora, decorridos dez anos, entendo que meu pai temeu pelo trono de ouro que sempre teve como certo em sua confortável posição de filho e que, com a chegada do garoto abandonado, se viu pela primeira vez ameaçado.

E quanto as minhas razões? 

O que uma criança de oito anos pode ver de tão ruim em um jovem acolhido pelo seu afortunado avô?

Sinceramente, mesmo depois de todo esse tempo, ainda não encontrei a resposta. Na minha cabeça infantil, alguém como ele, inicialmente tão magricelo e moribundo, com traços tão diferentes dos que eu conhecia, daqueles que me cercavam no magnífico palácio de coisas perfeitas em que fui criada, não deveria coabitar ao meu lado.  Tinha os olhos pequenos, o cabelo tão escuro, o idioma que me pareceu de início alienígena, com a fala enrolada e desesperada proferindo um inglês custoso de se entender. Tudo nele parecia estranho e errado no meu ponto de vista, como um brinquedo fora do lugar, um desalinho na ordem das minhas coisas intocáveis.

Eu não tinha motivos verdadeiros para odiá-lo, mas eu odiei, ou foi o que acreditei por um longo tempo, apenas porque parecia a coisa certa a se fazer, assim como odiava que trocassem meus ursinhos na prateleira do quarto, que não arrumassem cada centímetro da bagunça que eu espalhava pela casa e não trançassem meu cabelo da maneira que queria, com os adornos combinando com as estampas dos meus vestidos no verão.

As pessoas apenas faziam de tudo para seguir o padrão que eu ordenasse. Eu era a única criança da família, tudo sempre esteve focado em maneiras de me manter tranquila e entretida, coisas que eu desejasse, assim planejasse e eu nunca planejei, ou esperei, que meu avô voltasse de viagem com um projeto de filho adotivo a tiracolo.

Por isso, como uma garota mimada, fiz de tudo para negar e anular sua existência, porque meu pai também fez a mesma coisa pelo tempo em que seu reinado esteve ameaçado.

No primeiro dia em que o vi, realmente pensei que tivesse saído de algum outro planeta, pois se comportava como um animal acuado, ainda que já não fosse sequer tão criança para se portar de maneira tão tímida. Não trocou muito mais que meia dúzia de palavras em inglês com meu pai e quando vovô me sugeriu que lhe mostrasse o restante da casa, recusei, até ser veemente compelida pelos olhares feios trocados entre meus dois ascendentes autoritários.

Park Jimin, era esse seu nome. Enquanto se apresentava com um sorriso amedrontado e emoldurado por lábios arroxeados de um machucado que parecia ser recente demais, escutei os gritos revoltados do meu pai sobreporem a voz fraca. Foi naquele milésimo de segundo, em que descobri sua identidade, que soube: Ele nunca seria um de nós.

Park Jimin jamais seria um Salvatore.

Naquele momento, a clareza dessa afirmação me acertou, porque meu pai bradava feito louco, como só fazia se ardia de raiva e ninguém nunca controlava sua ira, todos naquela família sabiam disso, ninguém, nem mesmo meu avô. Mas não tivemos tempo para analisar a solidão que o estrangeiro emanava. Hoje me dou conta de que aquele rapaz, acuado e reprimido em si mesmo, sabe Deus porquê motivos, não pediu para estar ali, naquela casa, naquele país, mas ele foi levado àquela situação.

Mi FrantumiOnde histórias criam vida. Descubra agora