reparação: essa coisa diabólica

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O orvalho se mistura ao sangue.

Ponho rosto na altura do peito estático antes de lançar o desafio escrito em palavras rubras. A garoa e o padrão dos blocos de pedra formam o solo que marca meu joelho dobrado. Pingos de chuva me alcançam.

Tudo rapidamente se transforma.

Gotas de dilúvio escoando o vermelho do corpo estirado.

Sinto o cheiro da morte, dos lábios escancarados nos últimos temores sentidos pela vítima e faço dela um boneco de figuração em um show de horrores para nele me localizar como mestre de cerimônias. A sujeira combina com a carnificina idolatrada quando o cadáver ainda andava, emparelha com a brutalidade que ele, tão rapidamente, arguiu - sem me conhecer - como a singularidade mais importante em meu caráter.

Largado a praça - suportado pelo obelisco e seus domadores de cavalo*, as vistas do jardim feito de nada do Palazzo del Quirinale - um trapo ensanguentado, nú e dilacerado, Jean Lafaiete experimentou o que tanto buscou em meus olhos ao me conhecer pela primeira vez.

Vertendo o sadismo frio de um impassível homicida.

Ações.

Minhas ações e suas consequências.

O Presidente ainda movimenta pelo oportunismo a máquina incansável da organização criminosa. Espero que acorde e aprecia a bela vista de uma obra de arte abandonada aos vermes na palidez de pedra em sua residência, que ele grite o horror de uma criança e se revire em ânsias de vômito, que os romanos e os turistas pensem na violação de Jean pelo resto do dia, inquietos pelas notícias derivadas de mais um crime nesta rede gloriosa e muito bem estruturada.

Sem lições ensinadas.

Sem intenções que valham a justificativa.

Matá-lo foi nada.

Em meus dedos, cobertos pelo couro escuro, a carne fria manuseada não passou de instrumento para um recado a ser anunciado - a máfia vive. O costume de apagar os rastros é parte do inconsciente, mas o ocultei. Quem precisa saber saberá e a corrida é somente contra o amanhecer, porque tenho luvas cuspindo morte acumulada. Sangue na pele, sangue e vísceras nos tecidos finos cobrindo meu corpo. Não no sapato, porque a água dos céus se faz abundante o bastante para lavá-los da evidência do crime, mas eu reclamo a responsabilidade e percebo, com o pulso desacelerado de adrenalina, que encontrei na profanação de Jean algum tipo de lítio contento aos murros as ideações mais perigosas do descontrole anterior.

Inspiro e expiro - para inalar a chuva gelada e me fazer glacial.

Estou calmo.

Estou morto.

Como Andrei.

Como Namjoon-hyung.

Lítio, sim. Acompanhado de alucinações e devaneios para os quais não existe um canalizador saudável - arte na tela ou poesia sobre o papel - apenas matar e descobrir que meu coração também parou de bater. Me levanto entorpecido e fora da realidade, um observador da sujeira alheia, pois não me sinto mais à vontade em minha própria catástrofe - eu costumava ser muito bom limpando os vestígios, cuidadoso, higiênico e obsessivo. Não mais.

É como adormecer.

Mesmo acordado, sonho - enquanto caminho em direção ao carro, chutando a água da chuva com o bico fino do calçado; sonho com a partida do irmão de sangue e do irmão de alma, com meus pais idealistas perdendo a segurança e o direito de viver, todas as passagens da vida que não sinto mais impulsionar meus passos.

Mi FrantumiOnde histórias criam vida. Descubra agora