afeto: o que restou de Ischia¹

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As coisas que Salvatore prometeu, cada parcela de afeição e acolhida que o velho homem buscou comprar, não retiraram Jimin da condição de forasteiro. Ele não seria parte daquilo, porque soube que nada importaria, o quanto desejasse ou o quão duro tentasse, nada apagaria a vida que teve antes dali e embora não quisesse se comportar de maneira ingrata, desde o início recusou o país e a família Salvatore como sinônimos de lar.

Não gostava da Itália, como um dia gostou de sua casa no Canadá. Ainda que em seu novo mundo tenha tido oportunidade de provar coisas e entender, pela primeira vez, as inúmeras facilidades que o dinheiro proporciona, naquele lugar seu irmão não voltaria a existir, ele nunca saberia o gosto dos pratos caros servidos nas refeições daquelas pessoas bem sucedidas, não sentiria o cheiro das roupas novas e bonitas que agora pertenciam a Jimin. Naquele casarão litorâneo, Namjoon seria uma memória apagada, que seu irmão mais novo, o sobrevivente, relutava em deixar partir.

Sentia falta dele, sentia falta de ter alguém por perto que entendesse sua língua, sentia falta até mesmo das ruas imundas da velha Chinatown, porque mesmo em meio a miséria e as mazelas da criminalidade faminta, tinha em seus dias a amostra viva de um amor que era real. Naquele novo país, tal sentimento se apresentava em formas distorcidas e dissimuladas. O amor era um teatro ruim, com interpretações falhas.

Mesmo que jovem, Jimin foi capaz de notar que pela malha fina que cobria a aparente família feliz, rica e perfeita, havia ódio escapando pelas frestas das janelas suntuosas, se misturando ao aroma fresco da maresia e contaminando os criados, os cômodos, contaminando a garota inocente exposta a toda toxidade.

Jimin odiou a Itália em seus primeiros meses, mesmo que tenha ganhado coisas, sendo adulado pelo patriarca da família. Odiou porque no fundo era apenas o novo passatempo daquele homem velho, mesmo que com intenções boas, fazendo o que não deixava de ser caridade. Era isso que as pessoas falavam pelas suas costas, sobre as esmolas, sobre ser o novo brinquedo do Salvatore que tinha decidido se passar por Deus ao escolher salvá-lo da morte. Já o que recebia de frente era um tratamento polido, mas rodeado do preconceito pelas suas raízes.

Os adultos tentavam disfarçar o estranhamento diante de seu vocabulário limitado, sua aparência, seus costumes, mentindo e atuando. Mas a criança na casa, a filha única do filho único de seu salvador, justamente por ser criança, externava as pequenas ofensas com tanta naturalidade, que parecia certo. Ele era um forasteiro e não merecia ocupar uma cadeira na mesa de jantar pela noite, ele não merecia que o velho Salvatore tentasse impor a ele um título de filho.

Beatrice era perversa, Jimin sabia, mas percebeu que preferia conviver com sua arrogância e crueldade de menina, a ter que lidar com a hipocrisia e o preconceito revestido de palavras de piedade dos adultos. Aquela menina era o que era: mimada, insolente, mandona e venenosa. Era fácil entendê-la, fácil saber a origem de sua má conduta. Estava em formação, uma formação ruim na qual Jimin prometeu, tempos depois, que se pudesse, iria intervir.

Não gostava dela, não gostavam um do outro até uma fatídica tarde no verão nas costas afastadas, em que simularam um dia ensolarado na praia da ilha de Ischia. Antes dela, o rancor que Jimin nutria era muito mais sobre todo o país, toda a casa e a família, do que sobre a garota propriamente dita, mas era ela quem sempre arrumava desculpas para usá-lo como um escravo, quebrando coisas, expondo ao próprio pai as palavras erradas que proferia em italiano, cultivando e alimentando seu mal-estar, uma baixa autoestima intelectual. Por ela, Jimin acreditou que deveria mesmo ter morrido em Toronto ao lado de Namjoon, porque agora sabia estar vivendo em alguma espécie de inferno, sendo Beatrice seu anjo caído particular. Era bonita, a criança mais bonita que tinha visto na vida e decidiu que queria fazê-la boa naquela tarde.

Mi FrantumiOnde histórias criam vida. Descubra agora