conflito: como fogo e pólvora

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(ATENÇÃO: Este capítulo contém alusões a violência doméstica  e abuso psicológico/gaslighting*)

Um bom espião toma os cantos de todo o recinto sem ser notado, escuta cada sílaba de cada conversa sem precisar proferir uma palavra. É parte do cenário, nele se camufla como se fosse invisível, e agindo feito objeto, abre mão de esboçar as reações e transparecer sentimentos. Um bom espião não chora, grita ou se revolta. Ele retorna ao posto inicial e comunica a seu encarregado o conteúdo do que foi espionado. Sua opinião não importa, seu julgamento não vai ser de grande valia. São só olhos e ouvidos atentos, como uma câmera fotográfica registrando momentos que servirão, ou não, de munição a desconfiança de quem primeiro confiou em sua capacidade de descrição.

Andrei não era discreto, mas sempre foi invisível.

Poderia não ser o perfeito, mas poucos são no início das atividades dentro máfia e uma vez marcado, aprenderia, por bem ou por mal, a executar as tarefas que lhe fossem incumbidas com excelência. Deveria haver algo que o sobrinho imprestável da família Scano soubesse fazer, algo que o garoto indiscutivelmente fora dos padrões comportamentais de masculinidade pudesse executar sem denunciar, com seu jeito de agir, que era uma falha no sistema de homens honrosos, homens de verdade, como seu tio costumava dizer quando se referia a Enzo, filho e herdeiro por direito do império de dinheiro daquela família. A segunda família na linha de sucessão.

Se Matteo não voltasse a ter filhos, dentro de algumas décadas alguém carregando o sobrenome Scano assumiria o poder, dando fim ao reinado da linhagem Salvatore.

Por se encontrarem tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe do topo, pensar na existência de alguém como Andrei se tornou repulsivo. Seria a pior projeção para o futuro, um herdeiro que não fosse capaz de gerar novos herdeiros.

A palavra gay era usualmente vetada se o tio estava por perto ou o primo, que diferente daquele sempre defendeu Andrei com unhas e dentes, facas e armas, não por vergonha ou pelo bem da honra de seu sobrenome, mas porque o amava do jeito torto e reprimido, ressignificado pelos homens da Cosa Sacra. Porque sentir, o que quer fosse, te faria sempre pequeno frente ao campo de batalha e entre facções rivais, que de tempos em tempos se insurgiam contra o monopólio do tráfico promovido pela cruz negra.

Os primos não eram pessoas de coração ruim. Embora dividissem a mesma carne, o mesmo sangue, não eram ainda a imagem e semelhança de Cesare Scano, pai e tio. Havia salvação, como há salvação a todo garoto e garota prestes a dar o primeiro passo em direção ao caminho do crime, mas os limites, desde sempre, foram bem traçados e Enzo, pelo que leram superficialmente de seu caráter, parecia o mais inclinado a aceitar seu destino e até mesmo se aproveitar dele.

Ser parte da Cosa Sacra não era um martírio, não era nada se comparado a criminalidade das vielas da Nápoles, longe da Ilha de Capri, a vivida diariamente pelos associados em contato direto com os entorpecentes, sentindo as dívidas pesando no sustento de famílias, pagando por elas, se tornando, muitas vezes, dependentes de suas próprias mercadorias.

Os marcados pela cruz, ao contrário, estavam infiltrados em sobrenomes de tradição, patriarcas de heranças bilionárias como Jimitri, Alessandro Borghi, Francesco Barbieri; filhos criados com muito dinheiro e pouco trabalho como Matteo Salvatore e Cesare Scano; em netos mimados, que no fundo não passavam de engomadinhos rodeados de seguranças e artilharia a fim de proteger um segredo obscuro, como Enzo e Andrei.

Foram ensinados a atirar e mentir, a entender a dinâmica da multiplicação do dinheiro que já era muito, mesmo quando lícito, e a querer mais, sempre mais, não importa como, custe a vida que custar, milhares delas financiadas pelo tráfico.

Mi FrantumiOnde histórias criam vida. Descubra agora