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1 semana
Remorso era tudo o que eu sentia, desde o momento em que abandonei a mansão Salvatore após o final da festa até este que vivencio, no qual Beatrice está sentada com as mãos no colo, fingindo que está confortável sem estar, remexendo as sandálias de maneira inquieta, chutando inconscientemente os pés da cadeira em que está sentada à frente da mesa que tomei como minha no escritório do professor Barbieri.
Sonhei na noite passada com os olhos dela faiscando de raiva e acordei decidido a arrumar um novo caminho para a bagunça em que havia nos metido. Ignorá-la, ou fazer com que, quem sabe, me odeie não funcionaria, percebi. Pode até ser que funcionasse até certo ponto, mas não vou ser responsável por qualquer tipo de sequela na vida dessa menina. É essa minha decisão e tentei com afinco fugir dela nos últimos dias, porém era hora de arcar com o peso das minhas próprias palavras.
Não estou na posição de manter muitos princípios, considerando o meio em que vivo e o que faço, mas preciso ter limites. É este o grande segredo e o que me separa de um psicopata sem escrúpulos: a consciência, ou pelo menos uma parcela dela.
Salvatore não pode me arrastar para essa situação e esperar que eu me comporte como um robô sem coração, que eu o veja prestes a arrancar um braço da própria filha e continue de braços cruzados. Esse papel é dele, não meu. É ele o maníaco por controle, o pai maldoso e agressivo que está arrastando uma menina de quem sequer gosta para dentro de um ambiente familiar não apenas desestruturado, mas inexistente.
Não há amor naquela casa, não há afeto, não há carinho ou diálogo. Matteo criou Beatrice assim, mas eu não sou ele e não vou fingir que ela não está aqui, ou que não tem vontade própria, apenas porque seu pai pretende usá-la como um fantoche, ignorando suas vontades.
Quando conversamos a respeito de sua equipe de segurança naquela noite, no escritório dele, tendo em vista os perigos que a cercam e que sei muito bem que tendem a aumentar, eu estava convicto, completamente certo de que deveria evitar ao máximo qualquer tipo de contato com ela. Mas então, Salvatore fez o que fez, quase a espancou como se fosse uma pessoa qualquer, um dos traidores da máfia, e não sua única filha. Me dei conta de que se permanecesse inerte ele a mataria, talvez não naquele momento, mas hora ou outra esse, eventualmente, seria o desfecho dessa história.
Foi o que aconteceu com a mãe de Beatrice: Um suicídio esperado.
Não falo em sentido metafórico, antes fosse, falo em literalmente violência física, dessas que não só machuca a carne, mas a alma, reiteradas vezes até que a vida deixe de valer a pena, mesmo que uma vida cercada de coisas materiais da melhor qualidade. Essa violência, que parece ter nascido junto de Beatrice, se repetiu tantas vezes no passado, não vejo motivos para que não volte a acontecer agora que está mais velha. Certamente voltará e eu espero que o estrago seja de possível reparação.
Por isso, por esse ínfimo fio de consciência de como sua vida será difícil ao lado do pai, sei que não posso deixá-la sozinha. Posso ter matado pessoas, mas não saberia continuar vivendo se Beatrice morresse como uma das vítimas indiretas da máfia, as que morrem sem nem entender que se tivessem nascido em uma outra vida, em um outro lar, ou quem sabe se estivessem em outro lugar, a morte não teria lhes acometido tão cedo ou do jeito que acometeu.
A essas pessoas eu reservo o direito do não sacrifício.
Eu não suportaria, percebi isso pelo modo como rapidamente abandonei minha convicção de que deveria me manter imparcial sobre sua vida, assim que Matteo avançou como um alucinado sobre o corpo pequeno e frágil. Mas até a chegada desse inesperado momento de revelação de bom caráter da minha parte (algo que há muito tempo não me acontecia), o que também chamaria de última fagulha de moralidade, eu já tinha dito coisas pouco louváveis, que infelizmente Beatrice ouviu e, neste exato momento, deve estar desejando minha morte e vociferando internamente xingamentos nos mais variados idiomas que andou aprendendo nos últimos anos
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Mi Frantumi
Romance"Enquanto as mãos dele permaneciam sujas do mesmo dinheiro que me enriquecia, eu só rogava aos céus para que continuassem a me tomar como propriedade e me estilhaçar em ínfimas partículas de amor e dor. Eu o amei e não me arrependo." [...] Garoto en...