inimigo: um nêmesis desertor

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*ATENÇÃO: (este capítulo contém menção a ideação suicida)

A risca de giz da alfaiataria o destaca como fora de sua época.

Etéreo enquanto se apoia a cobertura da mesa, com a caneta do retroprojetor bailando entre os dedos.

Por isso, percebo, estou sonhando.

O mesmo dia de meses atrás se repete.

O ar fresco ao final do inverno quase perdido na calefação da primavera. Expressões apreensivas por toda a parte e anotações feitas às pressas querem encapsular o conhecimento do mundo em rabiscos de caligrafias - legíveis e ilegíveis - preenchendo a extensão de folhas em branco nos cadernos universitários; são detalhes, muitos detalhes, mas consciente da quimera reproduzida, partindo do início do que um dia foi real, nem assim sou capaz de despertar.

Me prendo a carteira não tão confortável da menor das salas do Ateneu de Ciências Jurídicas, à espera de que o cansaço da mente adormecida aniquile o que sobrou daquelas lembranças e me liberte de evocar sistematicamente a presença dele.

Jimin não precisa de um convite e Julieta disse até logo, deixando em vacância o posto de invasora de sonhos.

Tão perto, tão longe.

Voltei à nossa Província e na primeira noite dormindo distante de Roma, ela simplesmente partiu. Sem voz de mel, olhos desleais, a boca vermelha e a cabeça talhada em profusão de sangue. Nem sua melhor versão, nem a presença macabra dos tempos atuais.

Quanto mais me aproximo da Ilha, mais difícil é especular o que tanto espera de mim - sem sinais claros, também sem as pistas enigmáticas.

Em seu lugar somente o estrangeiro.

O inacessível: das vezes iniciais o observando de baixo a um degrau sempre acima de todo o resto. Naquela época eu não sabia como poderia abrir cada porta das janelas presas em seus olhares ambíguos. Desconhecia seu gosto e, acima de tudo, temia uma rejeição que me atormentava, mas a ele sempre completou.

Agora eu sei.

Agora penso que sei da nuance perdida em nosso princípio.

E estar inconsciente só traz de volta o tempo em que as conexões poderiam ter sido desfeitas, os nós desatados até o ponto em que se desentrelaçariam sozinhos. Antes da concessão, dos desafios e todas as permissões arrancadas - pelo bem ou pelo mal. Antes do eu te amo nunca respondido.

Alguém como ele talvez não possa mais amar.

Um assassino como ele.

Ele só parecia incrível quando não me pertencia e é confortável supervalorizar o que não se alcança com os dedos.

Era feito das coisas que eu mesma elegi como caracteres constitutivos de sua personalidade, moldando Jimin em minhas palavras de menina e na subversão do reencontro - mesmo na não correspondência das expectativas criadas na reclusão de um colégio rigorosamente guardado do mundo - ele ainda era digno de ser venerado com adjetivos agradáveis de se explorar em cima de um papel, como o que tenho à frente da caneta esferografica cor de rosa ou na lauda aberta de um programa de edição de texto. Minha fantasia. E é propício que retome essas visões dentro de um sonho: de onde nunca deveriam ter saído.

O terno completo* - paletó, colete e gravata escura - compõem um excesso.

Imoderado, por vezes desnecessário.

Mi FrantumiOnde histórias criam vida. Descubra agora